Roberto criou biblioteca itinerante em favela do Rio e teve aulas de empreendedorismo
A aposentada Juraci Nascimento era famosa em sua comunidade, o Morro do Zinco, uma favela do Complexo de São Carlos, no Rio de Janeiro. A senhora de 80 anos deixava as portas de seu sobrado sempre abertas, onde frequentemente organizava festas temáticas, como as de Natal, para cerca de 150 crianças em seu quintal. “Ela tinha uma lista de todas as crianças do Morro, com as suas medidas de roupa e de calçado. Com a ajuda de entidades parceiras da comunidade, distribuía um kit para a criançada toda no final do ano. Frequentei muito essas festas quando era menino. Dona Juraci me inspirou e me ajudou muito a ser o que sou”, conta Guilherme Vinícius Roberto, que hoje tem 30 anos e uma empresa social, fundada em sua homenagem. Faz um ano que ela morreu, então não chegou a conhecer o empreendimento que carrega o seu nome, a Livreteria Popular Juraci Nascimento. Mas, com certeza, ficaria orgulhosa. Assim como ela, a Livreteria tem como objetivo contribuir para melhorar a vida dos moradores da comunidade. E não cobra nada em troca. “Levo a literatura para as crianças do Morro, para que nutram o gosto pela leitura desde cedo. Quero consolidar um espaço na comunidade voltado para a cultura, para a arte e para a esperança”, conta.
A principal fonte de renda da Livreteria é o bolso do jovem empreendedor, formado em comunicação social, que trabalha de madrugada em uma produtora de clipping. No ano passado, o projeto chegou a receber 10 mil reais para sair do papel, da Agência Redes para a Juventude, um projeto de capacitação e inclusão de jovens apoiado pela prefeitura do Rio de Janeiro. Com esse capital inicial, a literatura itinerante ganhou vida no Morro. Em apenas um ano de existência, conta com 600 títulos, nacionais e internacionais, todos doados por entidades parceiras ou pelos próprios moradores da comunidade.
“Os jovens do Morro não têm perspectivas de ingressar no mercado de trabalho com bons empregos nem cursar uma boa universidade, pois não têm condições de pagar por isso. A ideia da Livreteria é garantir acesso gratuito ao conhecimento e instigar nos moradores, desde crianças, a buscá-lo em diversas fontes. Não é preciso dinheiro para adquirir gosto pela literatura e pelo conhecimento”, diz Roberto.
Para dar um passo à frente, ampliar o alcance do projeto, profissionalizar a gestão e transformá-lo formalmente em uma empresa, especificamente, em uma associação, o empreendedor está contando com o apoio do Social Starters, um programa de desenvolvimento de jovens transformadores, fundado pelas britânicas Anna Moran e Andrea Gamson em 2014. As primeiras rodadas do programa, que ajuda empreendedores de comunidades carentes a estruturarem seus negócios, ocorreu no Quênia. Depois, na Índia. Em junho deste ano chegou ao Brasil, na cidade do Rio de Janeiro. O programa tem apoiado empreendedores das favelas cariocas com consultoria e workshops de gestão. Todo o trabalho é realizado por voluntários. A primeira edição verde-amarela contou com 12 voluntários dos Estados Unidos, da Europa e da Austrália, que vieram ao Brasil para transmitir conhecimento sobre comunicação e publicidade, definição de plano de negócios, estratégias de captação de recursos, recursos humanos, design e outros pontos-chaves de gestão de negócios. Também fizeram parte do projeto 7 tradutores brasileiros.
No Brasil, o Social Starters é dirigido pela britânica Jiselle Steele. “O nosso trabalho é o de promover a troca de experiências entre um grupo de voluntários, especialistas em suas áreas, e um grupo de empreendedores, que estão cheios de boas ideias, mas têm muitas dificuldades em desenvolver um negócio autossustentável”, explica. Jiselle sempre trabalhou com projetos sociais. Por 9 anos ela ocupou cargos em organizações sem fins lucrativos em Londres, para o desenvolvimento de iniciativas dentro do empreendedorismo social. No último emprego, que trabalhava o legado das Olimpíadas de Londres em comunidades carentes, veio ao Brasil atrás de parcerias, visto que o país sediará os jogos em 2016.
No Rio de Janeiro, conheceu as fundadoras do Social Starters e resolveu ficar de vez na cidade para estruturar o projeto no Brasil. O projeto tem parceiros nacionais, como o Instituto Eixo-Rio, da prefeitura do Rio de Janeiro, e a Secretaria da Cultura do Estado do Rio, mas a fonte de renda são os próprios voluntários. Os empreendedores recebem a consultoria de graça, por um período de cinco semanas. “Eles chegam até nós por meio dos nossos parceiros. São pessoas que gerenciam negócios em diferentes estágios de desenvolvimento. Alguns até já auferem lucro, mas não conseguem receita suficiente para expandir as operações, para contratar funcionários, para garantir um fluxo financeiro saudável”, afirma Jiselle. O projeto não culmina em aporte de dinheiro, mas contribui para dar um impulso aos negócios.
Roberto, da Livreteria, participou da primeira edição do Social Starters, em junho, e faz parte também da segunda rodada, que começou em novembro. “Da primeira vez foi muito valioso para a minha empresa, pois aprendi como levar o projeto a mais pessoas e como captar recursos por meio de editais de cultura. Nesta segunda etapa, quero conseguir me formalizar e, com um CNPJ, conseguir parcerias com empresas ou até buscar recursos com investidores. Para isso, a empresa precisa estar mais profissionalizada”, conta o empreendedor.
A segunda edição conta com a participação de 7 voluntários estrangeiros e 2 tradutores brasileiros. O Social Starters está apoiando 5 empreendedores desta vez.”A estrutura mais enxuta vem do aprendizado da primeira edição. Percebemos que, para atender melhor os participantes do programa, precisamos de um trabalho mais individualizado com eles, mais customizado a cada necessidade”, explica Jiselle.
Além da Livreteria, o Social Starters está “incubando” outros quatro empreendimentos, a ONG Urece, que trabalha com atletas com deficiência visual, visando aos Jogos Paralímpicos; a ONG Rio Vida, que promove treinamento para empreendedores das favelas cariocas; a loja Maria Chantal, especializada em roupas que refletem a cultura africana no Brasil; e a loja de roupas Snipper, voltada para o “empoderamento” do jovem negro brasileiro. “Nossos empreendedores identificaram um problema na comunidade onde atuam e já desenvolveram uma solução, mas não têm acesso às ferramentas necessárias para manter um negócio em pé. Acredito que o maior benefício do Social Starters é mostrar para esse empreendedor que ele não está sozinho e que ele é capaz de trilhar o seu caminho com as próprias pernas”, conclui Jiselle.
Nas trilhas de Yunus
O empresário mais icônico do empreendedorismo social é o “pai” do microcrédito, o indiano Muhammad Yunus. O economista, que ganhou o Nobel da Paz em 2006 por conta do Grameen Bank, o banco que ele fundou e que concedeu crédito a milhões de indicanos pobres, ignorados pelo sistema financeiro tradicional do país, vem disseminando o conceito de negócios sociais pelo mundo por meio da Yunus Social Business. A fundação tem como objetivo acelerar pequenas empresas que promovem a melhoria das condições de vida das comunidades que as rodeiam.
Nesse modelo de negócios, o lucro não é bem-vindo. Todo o dinheiro levantado pela empresa é reinvestido em suas operações, para que ela seja autossustentável. A Yunus está presente atualmente em 8 países, entre eles, o Brasil, e tem se tornado uma inspiração para empreendedores no mundo todo.
No Brasil, o projeto se chama Yunus Negócios Sociais e foi lançado, como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), em 2013. Até hoje, o projeto já contribuiu para a aceleração de 26 empresas sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo.
“Nosso trabalho é filantrópico e sobrevivemos até então de doações do setor privado”, explica Rogério Oliveira, diretor do projeto no Brasil. Em junho deste ano, a Yunus Negócios Sociais começou a captar recursos no mercado por meio de um Fundo de Investimentos em Participações (FIP). Por meio desse fundo, uma empresa interessada em ajudar uma startup social pode, na prática, aplicar recursos diretamente por meio de cotas.
“O investidor poderá resgatar seu investimento, sem lucro, depois de alguns anos, quando as empresas tiverem maturação. A ideia é atrair somente empresários com uma mentalidade filantrópica para o projeto”, afirma Oliveira.
A cada processo de seleção de startups sociais para o programa de aceleração, a Yunus recebe mais de 200 inscrições. São escolhidos entre seis e sete empreendimentos por ciclo. “Quando o FIP estiver encerrado a captação, as empresas selecionadas poderão compor a carteira de investimentos”, explica Oliveira.
Fonte: El Pais | Ana Carolina Cortez