Mercado francês é chave para internacionalização; para editores, é preciso oferecer ‘mais qualidade’ e fugir de temas comuns
No 35º Salão do Livro de Paris, que entre os dias 20 e 23 de março teve o Brasil como convidado de honra, nenhum brasileiro fez mais sucesso do que Machado de Assis. Títulos como “Dom Casmurro” e “Memórias póstumas de Brás Cubas” venderam como pão no pavilhão brasileiro do evento, que recebeu uma delegação composta por 43 autores nacionais.
O apelo comercial do Bruxo do Cosme Velho não surpreende. A intimidade entre Machado e os franceses é recente, mas consolidada. Começou nos anos 80, graças a Anne Marie Métailié, uma francesa apaixonada pelo Brasil. Fundadora da Editions Métailié, ela faz parte de um grupo seleto: o de editores franceses que se especializaram em difundir a literatura brasileira em seu país.
Desde 2011, quando o Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior foi reforçado com bolsas mais generosas da Biblioteca Nacional, a internacionalização da literatura nacional deu um salto significativo. A França é, hoje, o terceiro país que mais se aproveita deste programa. O número de livros brasileiros publicados ainda é pequeno, mas cresce: foram 80 nos últimos quatro anos, 42 só em 2014 (quase o dobro do ano anterior). Nos últimos cinco anos, foram concedidas 59 bolsas a editoras locais.
A Métailié, porém, apostou no Brasil em uma época em que seus escritores eram ainda mais raros nas livrarias francesas, e em que os apoios à tradução quase inexistiam. Pioneira, abriu o caminho para que outros decidissem publicar escritores brasileiros de forma regular, antes mesmo que o auxílio da bolsa tradução facilitasse essa opção. Depois dela, veio a Chandeigne, nos anos 90; e a Folies d’Encre, no final dos 2000. Nos últimos anos, outras pequenas casas fizeram das letras brasileiras um nicho, como é o caso da Anacaona.
DE MACHADO DE ASSIS A FERRÉZ
Criada em 1979, inicialmente como editora especializada apenas em ciências humanas, a Métailié reinventou-se quatro anos mais tarde, quando Anne Marie percebeu que havia um mercado a ser explorado na ficção estrangeira. Voltou-se primeiro para a literatura do Brasil porque falava português e havia morado no país nos anos 70 (foi pupila de Antonio Candido). Depois, passou a publicar também autores portugueses (como José Saramago e António Lobo Antunes) e da América Latina.
— Decidi começar por Machado porque era um autor muito mal editado: a única edição que havia na época datava dos anos 30, e a tradução para o francês não captava a ironia do autor — conta Anne Marie. — Fez sucesso logo de cara. Em seguida editei “Os sertões”, de Euclides da Cunha, que não deu muito certo comercialmente. Mas a relação com os brasileiros continuou.
Machado é o carro-chefe da Métailié, mas está longe de ser o único brasileiro do catálogo. Nos últimos 30 anos, a editora vem apresentando aos franceses nomes como Lucio Cardoso, Autran Dourado, Antonio Torres, Adriana Lisboa e Cristovão Tezza. Nos anos 90, Anne Marie teve um caso de amor à primeira vista com a obra de Bernardo Carvalho, de quem publicou quase tudo — com êxito crítico e comercial. “Reprodução”, último romance de Carvalho, foi um dos títulos da Métailié que esgotaram na livraria do pavilhão do Brasil no Salão. O outro foi a coletânea de contos “Brésil 25”, organizada por Luiz Ruffato.
Na esteira de Anne Marie, a editora Chandeigne também se firmou como um porto seguro da literatura brasileira na França. Fundada em 1992 por Michel Chandeigne e Anne Lima, ela se apoia em um catálogo de autores clássicos, como Lima Barreto e Carlos Drummond de Andrade. Este ano, graças ao programa de tradução da Biblioteca Nacional, apostou nos contemporâneos Fernando Morais e Luiz Ruffato — este último, grande destaque da mídia francesa durante o salão.
Michel e Anne são vistos como autênticos embaixadores das letras lusófonas. Desde 1986, eles tocam a Librairie Portugaise et Brésilienne, que conta com um vasto arquivo de língua portuguesa: 400 títulos do Brasil e 350 de Portugal. Localizada no Quartier Latin, perto da Sorbonne, a livraria se tornou uma parada obrigatória para os franceses interessados na cultura brasileira.
Já a editora surgiu com o desejo de editar os relatos dos grandes viajantes portugueses do século XIV ao XVI, a maioria deles inédita em francês. O foco nos clássicos brasileiros veio em seguida. Sua edição do “Conto de escola”, de Machado de Assis, entrou no programa de educação nacional francesa em 2004.
— Fizemos um dossiê pedagógico com a Universidade de Clermont-Ferrand em cima do “Conto de escola”, que mostra que a melhor maneira de fazer a literatura brasileira entrar na França é começando pelos mais jovens, na rede de ensino pública — explica Anne Lima. — As escolas francesas ainda usam pouca literatura brasileira. Antes da obra de Machado, só havia “Meu pé de laranja lima” (de José Mauro de Vasconcelos).
Em 2011, a editora empreendeu um projeto épico: a primeira grande antologia de poesia brasileira na França. Fruto de cinco anos de trabalho do tradutor Max de Carvalho, “La poésie du Brésil” reuniu 130 poetas em 1500 páginas. O esforço valeu a pena: foi a obra escolhida pelo ministro da Cultura, Juca Ferreira, para presentear o presidente francês François Hollande, durante a sua visita ao pavilhão brasileiro no Salão.
Segundo Michel Chandeigne, no entanto, os autores mais vendidos em sua livraria não são poetas nem romancistas, e sim cronistas como Fernando Sabino e Luis Fernando Verissimo.
— São autores simples e divertidos, ótimos para quem quer aprender português — diz o editor.
“NEM TODA OBRA MERECE VIAJAR”
Verissimo, aliás, é um dos nomes do catálogo de Jean-Marie Ozanne, dono da Folies d’Encre. No final dos anos 2000, Ozanne percebeu que diversas obras chegavam à França em traduções inadequadas e quis reeditá-las de forma mais cuidadosa. Convenceu Moacyr Scliar e Carlos Heitor Cony com a promessa de uma relação duradoura. Desde 2009, a editora independente publica regularmente obras brasileiras. Entre os títulos recentes do catálogo estão “Dois rios”, de Tatiana Salem Levy, e “Maracanazo”, de Arthur Dapieve (escrito especialmente a convite da editora, e ainda inédito no Brasil), ambos lançados durante o evento em Paris.
— Para você ter uma ideia, “Max e os felinos”, do Scliar, aqui se chamava “Max et les chats” (Max e os gatos). Só que gatos são gentis, não representam o lado pesado que o livro sugere — observa Ozanne. — Então chamei o Philippe Poncet, que na época trabalhava no setor comercial de uma outra editora, para retraduzir esses livros e também buscar outros títulos inéditos.
Apesar das experiências distintas, os editores têm uma opinião em comum. Todos acreditam que é hoje impossível definir a literatura brasileira em um estilo, tamanha sua diversidade. Por isso, é preciso vender livro a livro, nunca um pacote. Neste sentido, a única a apostar numa corrente mais específica é Paula Anacaona, da Anacaona. Desde 2010, com a publicação de “Manual prático do ódio”, de Ferréz, Paula vem editando em peso a chamada literatura marginal, movimento que reagrupa as diferentes produções literárias criadas nas periferias brasileiras. No último ano, o apoio da Biblioteca Nacional ajudou Paula a ir além da literatura marginal, publicando autores como Rachel de Queiroz e João Carrascoza. No entanto, seu livro mais vendido foi editado de forma independente — a coletânea “Je suis favela”, que traz diversos contos inspirados nos bairros desassistidos do país.
— Ferréz esteve na mão de quase todos os editores franceses e ninguém quis publicá-lo — lembra Paula. — Acho que é por causa de sua linguagem. Mas eu queria ouvir vozes e ver pessoas que quase nunca aparecem nos livros, e a literatura marginal me trouxe isso. Ao traduzir esses escritores, usei um vocabulário próprio da periferia francesa e isso os aproximou de muita gente por aqui. Os livros falavam como os moradores da banlieu.
No momento em que a literatura brasileira tenta mais do que nunca se internacionalizar, o mercado francês apresenta um horizonte sedutor. É estável (em plena crise, decresceu apenas 1% entre 2014 e 2015), aberto (é um dos únicos a oferecer apoios de tradução à literatura estrangeira) e tradicional (continua sendo visto como uma chancela para os autores). Penetrar nesse mercado, porém, ainda é uma tarefa difícil.
— Na França, as vendas se dividem em três grupos: 35% para a literatura francesa, 30% para a anglo-saxã e a outra parte vai para o resto do mundo — diz Ozanne. — Nessa parcela, o Brasil é muito, muito pequeno. A verdade é que vocês não estão mais na moda por aqui e são difíceis de vender, pois não fazem parte das expectativas dos leitores.
Depois de 30 anos garimpando a literatura do país, Anne Marie só vê uma maneira de aumentar a difusão brasileira: oferecer mais qualidade.
— Nem toda obra merece viajar — avalia a editora. — A produção brasileira tem qualidade, mas atualmente tentam nos vender uma maré de textos não acabados, muito adolescentes, que não merecem ser exportados. Também há, como em toda América Latina, muitas obras com os mesmos temas, autores de 40 anos falando sobre problemas de classe média, de matrimônio… Este tipo de livro não nos interessa, já temos aqui. Para ser traduzido, tem que oferecer algo diferente. Não falo de exotismo e sim de uma voz única, um ponto de vista sobre o mundo que é só dele.
Fonte: O Globo | Bolivar Torres