Traduzir literatura de qualidade para o português exige preparo e sensibilidade
Publicado em 1835, o romance O lírio do vale é considerado uma das principais obras balzaquianas. Em um dos 89 títulos d’A comédia humana, Honoré de Balzac relata o caso de amor trágico entre um jovem, Félix Vandenesse, e uma mulher casada, a condessa Mortsauf. Entre as provas de amor, ele faz um buquê com todas as flores de uma determinada região da França. Com uma experiência de mais de 20 anos e ao menos 100 livros como tradutora, Rosa Freire d’Aguiar admite ter tido muita dor de cabeça para conseguir verter para o português três laudas com espécies de flores francesas de quase dois séculos atrás. “Evidentemente, nem todas existem no Brasil, então você tem que adaptar”, admite.
Profissão solitária e, por vezes, invisível aos olhos do leitor médio, a tradução vem avançando no país, principalmente nas últimas duas décadas. “Hoje, quase não se publicam traduções indiretas. Não só as grandes, mas também médias e pequenas editoras investem nas traduções e têm quadros competentes para selecionar as obras, bem como cuidar das edições”, afirma Henryk Siewierski, responsável, entre outros, pela tradução da ficção completa do escritor polonês Bruno Schulz (pela Cosac Naify).
É um cenário bem diferente daquele em que dois dos mais experientes e premiados tradutores brasileiros – Rosa Freire d’Aguiar (francês, em primeiro lugar, mas também italiano e espanhol) e Paulo Henriques Britto (inglês) – começaram suas carreiras. “Cheguei a fazer a primeira tradução de As brasas (do húngaro Sándor Márai, também primeiro título dele publicado no país) para a Cia. das Letras do italiano para o português. Como o húngaro é uma língua difícil, o autor permitiu que, num dado momento, se traduzisse do italiano. Mas hoje em dia a editora tem um tradutor do húngaro (Paulo Schiller)”, conta Rosa d’Aguiar.
Ter uma outra língua que não a original como intermediária muda bastante a escrita. “Dostoiévski chegou ao Brasil a partir do francês. E, sabidamente, os franceses têm certa mania de embelezar as traduções. As primeiras versões de Dostoiévski são muito bonitas, o que não era para ser, pois o russo é muito rude e duro”, continua ela. Rubens Figueiredo, que traduziu do russo para o português os clássicos Guerra e paz e Anna Kariênina, de Liev Tolstói, para a Cosac (a editora passou a grafar o nome do autor, até então chamado Léon Tolstói no país, no original russo), complementa: “O fato de haver outras traduções não é tão relevante. Não existe tradução definitiva. Com o tempo e a dinâmica da história, os problemas ganham sempre novas formas e as soluções também mudam.”
Formação Paulo Henriques Britto, no entanto, acredita que um livro clássico deve ganhar uma nova tradução se ela se justificar: “Corrigir problemas apontados nas anteriores – ou então uma nova proposta tradutória – atualizar o idioma, ou reproduzir melhor um estado anterior do idioma.” Professor na PUC-Rio, que tem o curso de formação de tradutores mais antigo do Brasil, Britto não acredita que a formação universitária seja essencial. “Muitos tradutores do passado não tinham tal formação, que não existia. O mais importante para a formação é ler muito, para aprender a escrever bem. Por outro lado, o diploma em tradução está se tornando cada vez mais importante no currículo.”
Siewierski chama a atenção que muitos dos tradutores são imigrantes ou seus filhos, “a quem se deve a introdução de traduções diretas das línguas ainda pouco conhecidas aqui. Mas hoje, além de atrair os novos imigrantes, o Brasil tem condições melhores de formar tradutores das línguas pouco conhecidas, aproveitando uma curiosidade nata para as outras culturas e as maiores possibilidades de estudo no exterior.” Os profissionais são unânimes em dizer que, de uma maneira geral, as editoras respeitam seu trabalho, deixando-os sempre como responsável pelo texto final. “Depois que sai das mãos do revisor, o texto deve ser encaminhado ao tradutor para que este aprove ou rejeite cada uma das mudanças e correções propostas. Algumas editoras já perceberam que o tempo que se gasta nesse processo é fartamente compensado pelo ganho de qualidade do produto final”, diz Britto.
Além de prosa, Britto traduz muita poesia. É o tradutor, por exemplo, da obra de Elizabeth Bishop no país. “O tradutor de poesia deve dominar o artesanato da forma poética no seu idioma; não precisa necessariamente ser um poeta, isto é, um artista criativo além de um artesão, mas se for, melhor ainda, é claro. De modo geral, todo poema que valha a pena ser traduzido levanta questões interessantes no plano da forma que não podem ser deixadas de lado, além de dizer algo no plano semântico.”
O sentido inverso também é feito pelos tradutores, mas com menos vigor. Em polonês, por exemplo, há algumas obras de autores como Machado de Assis, Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Paulo Coelho, entre outros. “A lista do que ainda precisaria ser traduzido é muito mais longa. No ano passado, saíram várias traduções de poesia e prosa contemporâneas no número especial da revista Literatura na´swiecie (Literatura no mundo) dedicado ao Brasil. Também saiu uma pequena antologia da poesia brasileira que tive o prazer de organizar, mas infelizmente sem as traduções de poemas selecionados de Cecília Meireles e de Manuel Bandeira, devido à impossibilidade de conseguir a autorização da parte dos detentores dos direitos autorais. As traduções desses poemas já foram feitas, e foi como se os herdeiros dos autores lhes negassem o direito à vida em outra língua”, conclui Siewierski.
De Bashô a Kawabata
Leiko Gotoda e Meiko Shimon, duas senhoras que vivem em São Paulo, são duas das principais tradutoras de japonês/português no Brasil. A primeira, filha de japoneses, nascida na capital paulista, é conhecida por ter traduzido Musashi, de Eijo Yoshikawa. A clássica aventura (um calhamaço de quase 1,8 mil páginas, lançadas em dois volumes, que conta a história do maior samurai de todos os tempos), publicada no país no início dos anos 1990, serviu, para muita gente, como uma espécie de introdução para a literatura japonesa. Já Meiko Shimon, natural de Kyoto, está no Brasil há meio século e se especializou em traduzir o vencedor do Nobel de Literatura Yasunari Kawabata.
Para ambas, a tradução do japonês tem questões muito mais diversas do que as de línguas ocidentais. “É uma tradução difícil, pois as línguas são completamente diferentes, não têm semelhança na estrutura, no modo de expressão. O sistema linguístico é outro, então você não apenas traduz, mas recria”, afirma Meiko Shimon. Leiko Gotoda acrescenta: “A carga de interpretação do tradutor é muito maior do que nas traduções de inglês, por exemplo.”
O interesse pela literatura japonesa vem crescendo no país desde a década de 1980, elas afirmam. Há editoras que têm se debruçado nessa produção, caso da paulistana Estação Liberdade e da mineira Tessitura, que publicou, com tradução de Meiko Shimon, O ganso selvagem, de Ogai Mori (importante obra da literatura japonesa moderna) em edição bilíngue – a editora também vai publicar uma nova tradução dos poemas de viagem de Matsuo Bashô.
Leiko Gotoda comenta que depois de uma demanda inicial pelos clássicos – “que é onde começa a apresentação da literatura de qualquer país” –, o mercado editorial vem mostrando interesse por autores mais contemporâneos. Mesmo assim, ela acredita, o caminho ainda é longo. Já Meiko Shimon, professora aposentada de literatura japonesa, diz que a produção maior é do século 20. “Do século 8 até o 19 quase não existe nada. Isso porque a língua japonesa, até o início do século 19, é arcaica e os tradutores têm o domínio da língua moderna. No próprio Japão existem livros traduzidos do japonês arcaico para o moderno.”
Curiosamente, Meiko Shimon se lançou na tradução por pura carência de material. Como professora universitária, ela sentia falta de livros para os próprios alunos estudarem. Então, começou, ela própria, a fazer as traduções. Hoje, longe da universidade, ela continua sua pesquisa. Tem um grupo de estudo de tradução de português para o japonês. “É hoje o meu hobby. Traduzi para o japonês poemas de Mário Quintana que estou tentando publicar, mas ainda não tive autorização dos detentores dos direitos autorais”, conclui.
Fonte: EM Cultura | UAI | Mariana Peixoto