
As produções “A Receita Federal e o jeitinho brasileiro” e “Autores censurados pela Fundação Palmares deveriam ser lidos por brasileiros”, do presidente do Conselho Regional de Biblioteconomia 6ª Região Minas Gerais e Espírito Santo (CRB-6), Álamo Chaves (CRB-6/2790), foram publicadas nos portais Ata News e Araraquara News, respectivamente. Ambos os textos tiveram o desmonte da educação e da cultura no Brasil como norte.
Em seus textos, Álamo focou na proposta excludente do ministro da Economia, Paulo Guedes, de aumentar a tributação sobre livro já que, segundo ele, “pobre não lê”. Em um contraponto ao titular da pasta, o presidente do CRB-6 argumenta que a proposta só afastaria ainda mais os brasileiros de baixa-renda da leitura, ação essencial para adquirir conhecimento e desenvolver outras visões de mundo.
Confira o artigo publicado em maio deste ano.
A Receita Federal e o “jeitinho brasileiro”
O “jeitinho brasileiro” é uma das piores particularidades da cultura brasileira, considerando o conceito sociológico de cultura. Embora criativas, as soluções encontradas pelos brasileiros para burlar leis e normas refletem a identidade corrompida de um país que se valeu de explorações diversas até se firmar como nação. Ainda que sejam práticas corruptas do cotidiano, é no cenário político que elas apresentam maior visibilidade e repercussão. A mais recente, por exemplo, ocorreu na Receita Federal. Em relatório divulgado na primeira semana de abril, o órgão defendeu o aumento das tributações sobre livros argumentando que pessoas pobres não leem.
Desde meados do ano passado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, quer acabar com o benefício que reduz o custo na produção de livros e arrecadar, ao menos, 12% da receita bruta das editoras. Entretanto, a Constituição Federal veda aos órgãos federativos instituir impostos sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”. Ou seja, a medida pode ser considerada inconstitucional. Para mais, um dispositivo de lei de 2014 concedeu isenção de Pis e Cofins sobre a receita na venda de livros e no papel usado em sua confecção.
Guedes segue na contramão da carta magna para defender seu projeto de reforma tributária em que as editoras não serão mais isentas de pagar Pis e Cofins, passando a “colaborar” com a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços). Em consonância com o titular da Economia, a Receita Federal publicou o recente relatório com perguntas e respostas sobre a CBS para explicar o motivo do novo tributo ser cobrado na venda de livros.
O documento lança mão de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para sustentar a tese que pessoas pobres não leem e, por isso, o governo deveria aumentar a tributação.
“De acordo com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2019, as famílias com renda de até dois salários mínimos não consomem livros não-didáticos e a maior parte desses livros é consumida pelas famílias com renda superior a dez salários mínimos”, informa o documento. O relatório acrescenta que “dada a escassez dos recursos públicos, a tributação dos livros permitirá que o dinheiro arrecadado possa ser objeto de políticas focadas, assim como é o caso dos medicamentos, da saúde e da educação no âmbito da CBS”.
A falta de consumo de livros por grande parte dos brasileiros, que deveria ser vista pelo poder público como um grande problema, foi considerada solução para outro entrave: a crise econômica. E, nesse contexto, o governo demonstra que o “jeitinho brasileiro” já se tornou uma prática institucionalizada dentro da máquina pública.
Como pode um país mergulhado numa crise sanitária, financeira e social facilitar a compra e o porte de armas e dificultar ainda mais o acesso aos livros para a camada mais pobre da população? A luta contra essa realidade pode parecer mera batalha utópica, mas é necessária para levantar a voz em denúncias contra as práticas disparatadas, que, lamentavelmente, parecem estar longe de acabar.
O segundo artigo, “Autores censurados pela Fundação Palmares deveriam ser lidos por brasileiros” aborda a gerência do atual presidente da organização, Sérgio Camargo, destacando o relatório “Retrato do Acervo: A Doutrinação Marxista” em que são citadas obras consideradas contrárias aos ideais nacionais e, por isso, deveriam ser retiradas das estantes da Fundação.
O documento cita autores como Machado de Assis, Max Weber e Simone de Beauvoir. Camargo justificou a censura por meio de mais nada que opinião pessoal, como você lê no artigo de Álamo Chaves.
Autores censurados pela Fundação Palmares deveriam ser lidos por brasileiros
Contam que, certa vez, o livro “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, foi colocado na seção de botânica de uma livraria. Se o atual presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, trabalhasse na referida livraria, não haveria dúvidas de que seria ele o autor dessa confusão, devido seu profundo desconhecimento literário. Autor de declarações célebres como “o cabelo do negro é carapinha” e “o movimento negro é a escória maldita”, Camargo decidiu agora promover uma efetiva censura na fundação.
O relatório “Retrato do Acervo: A Doutrinação Marxista”, produzido e divulgado pela Fundação Palmares no último dia 11, revela a devassa que a atual gestão tem promovido no órgão. De acordo com o documento, o acervo da fundação conta com quase 9.600 títulos, dos quais 46% são de temática negra, enquanto 54% são de temática alheia à negra. A solução encontrada pelo presidente da instituição para resolver essa dicotomia, portanto, foi expurgar pelo menos 5.300 livros. Entre os autores excluídos, estão Marx, Engels, Lênin, Weber, Hobsbawm, Simone de Beauvoir, H. G. Wells e até Machado de Assis.
Para justificar sua atitude, Camargo afirmou no relatório que, “assim como um livro exclusivamente sobre sistemas hidráulicos será excluído simplesmente por ser um livro sobre sistemas hidráulicos, os marxistas também serão. Porque, a rigor, tanto o marxismo quanto os sistemas hidráulicos nada têm a ver com o escopo da Palmares e com a cultura negra”.
A fundação ainda justificou o descarte de livros como o “Dicionário do Folclore Brasileiro”, um clássico do historiador Câmara Cascudo, por se encontrar “gramatical e ortograficamente desatualizado”, além de apresentar “páginas soltas e exibindo um forte cheiro de mofo”. Já a obra “Papéis Avulsos”, de Machado de Assis, editado em 1938, será excluída do acervo por supostamente prestar um desserviço a quem consultá-la, uma vez que palavras como “crônica”, “anos” e “Espanha” estão grafadas na publicação machadiana como “chronica”, “annos” e “Hespanha”, respectivamente.
No entanto, a fundação ignora que existem métodos científicos desenvolvidos por bibliotecários para tratar acervos como os mencionados. Também ignora a existência de técnicas especializadas para tratar problemas como cheiro de mofo e páginas soltas, comuns em obras raras.
Camargo parece desconhecer, ainda, que considerar a memória negra como algo isolado é ignorância. Quando se trata da identidade de um povo, há de levar em conta as relações e interações sociais e as diferentes culturas que moldaram o caráter daquele povo.
O relatório da fundação ainda ressalta que 54% do acervo contém temas como “sexualização de crianças, ideologia de gênero, pornografia e erotismo, manuais de guerrilha, manuais de greve, manuais de revolução, bandidolatria, bizarrias”.
Diante de tal afirmação, é oportuno voltar às obras de Marx, Engels, Lênin, Weber, Hobsbawm, Simone de Beauvoir, H. G. Wells e Machado de Assis no intuito de conferir se alguma delas traz como premissa a pornografia, a sexualização de crianças, a ideologia de gênero, ou algumas das outras declarações em fundamento listadas por Camargo. Certamente, não as encontraremos, mas não custa procurar. Quem sabe assim, ao termos contato com esses autores, fazemos com que o Brasil deixe de ser uma sociedade marcada pela alienação geral.