Universidade de São Paulo disputou biblioteca, cartas e anotações do intelectual húngaro com a UFMG
Atrás da biblioteca — ou “brilhoteca”, como diz a placa na porta —, Paulo Rónai gostava de espreitar os lagartos que vinham até o galinheiro comer os ovos. Era preciso pisar leve, para não espantar os bichos. Outras vezes, ele passava momentos distraído com os peixes no lago do jardim ou os pássaros atraídos pelas árvores. Mas eram apenas distrações, porque o homem passava a maior parte do dia em sua biblioteca, lendo e escrevendo, ou respondendo às cartas que chegavam de todo o mundo — de amigos, conhecidos ou ex-alunos.
O intelectual húngaro naturalizado brasileiro morreu em 1992, ao fim de uma luta contra o câncer na garganta. Desde então, tudo o que leu e escreveu naquele espaço ao lado do galinheiro — em seu sítio, na Região Serrana do Rio — está do jeito que ele deixou. Ao longo das últimas décadas, a família tentou fazer o melhor para preservar o acervo, mas sabia que o ambiente da serra, tão úmido, estava longe de ser o ideal.
“Intenção nunca foi fazer leilão”
Agora o problema está resolvido. Nas últimas três semanas, duas das maiores instituições de ensino e pesquisa do país — a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) — estiveram envolvidas em uma disputa acirrada para comprar o acervo de Paulo Rónai. Quem levou foi a USP, que recebeu a resposta das herdeiras de Paulo Rónai na última sexta-feira. A primeira oferta foi feita pela UFMG. De lá para cá, houve propostas de lado a lado, mas a família não revela por quanto o negócio foi selado.
— Nossa intenção nunca foi fazer um leilão. As pessoas que nos procuraram, das duas universidades, eram formidáveis, odiamos ter de decepcionar uma delas — diz Laura Rónai, filha do intelectual. — De todo modo, estamos muito felizes com o fato de nosso pai estar sendo redescoberto. Quando ele morreu, ninguém deu atenção. Agora, a importância dele está sendo reconhecida.
A papelada começou a correr na própria sexta-feira na USP. Os 7.813 livros da biblioteca de Paulo Rónai e seus mais de 60 mil documentos serão incorporados à coleção de obras raras da universidade. Cartas, diários e demais anotações serão guardados pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB). Bom para a família, que fez questão de que o acervo ficasse no Brasil. E não por falta de ofertas de fora.
— Recebemos propostas das universidades de Princeton e Miami. Mas eu achei que não era bom a biblioteca do Paulo sair do Brasil. Tem tanto brasileiro que pode querer estudá-lo ou algum amigo dele, ou mesmo dar só uma olhadela. O cara ter que viajar! — pondera Nora Rónai, viúva do intelectual. — Os americanos têm muito mais dinheiro. Se eles querem estudar, eles podem pagar a passagem mais fácil do que nossos pobres rapazes estudantes.
Na quinta-feira, antes de a negociação ser fechada, a reportagem do GLOBO esteve na “brilhoteca”, batizada com esse nome por uma das netas de Rónai, quando criança. O espaço, já considerado por pesquisadores da USP um dos principais acervos brasileiros do século XX, é um mar de histórias sobre seu antigo dono.
Na parede da escada que dá para o segundo andar, por exemplo, encontra-se uma carta enviada a Paulo Rónai por Getúlio Vargas. “Tenho a satisfação de acusar o recebimento do vosso livro BRAZILIA ÜZEN, contendo poesias brasileiras traduzidas para o idioma húngaro”, escreveu o ex-presidente, em 20 de novembro de 1939. Com a missiva em mãos, o tradutor de origem judaica conseguiu um visto para o Brasil e fugiu do nazismo, depois de aproveitar um indulto no campo de trabalhos forçados em que estava. Paulo Rónai emoldurou a carta e a pendurou na parede — a mesma em que ficam seus prêmios.
Organização impressiona
O intelectual também era um amante do mar. Pelo menos é o que parece ao se ver a coleção de centenas de conchas que mantinha na biblioteca. São cerca de dez gavetas repletas delas. Em cima, atlas sobre a vida marinha, como “Guide de la mer mysterieuse” (guia do mar misterioso, em português).
Livros sobre o mar junto às conchas mostram como o dono do acervo era organizado. Suas prateleiras estão arrumadas por temas. Uma sobre a Rússia, por exemplo, reúne tanto contos de Tchekov quanto dicionários. Há ainda livros com contos de várias nacionalidades — provavelmente fontes de Paulo Rónai ao organizar os dez volumes de “Mar de histórias”, uma antologia do conto mundial. Muitas prateleiras são dedicadas a Balzac, já que Rónai organizou a tradução brasileira de “A comédia humana”.
O acervo também mostra um homem atencioso, que não deixava cartas sem resposta. Seus antigos alunos do Colégio Pedro II escreveram anos a fio para contar novidades de suas vidas. A correspondência mais valiosa para pesquisadores, porém, é com os muitos intelectuais próximos a Paulo Rónai, como Guimarães Rosa, Aurélio Buarque de Holanda, Antônio Houaiss, Lygia Fagundes Telles.
Em uma delas, de 13 de setembro de 1948, Erico Verissimo se vangloria de ser um bom motorista: “O automóvel já está funcionando. Decepcionei os amigos, revelando-me um grande chauffeur”, escreveu. As cartas estão dispostas em pastas, organizadas por data. Rónai respondia a elas sentado ao lado da janela, de onde podia ver o almoço ser preparado na cozinha e sentir o cheiro do café.
No campo de trabalhos forçados, Paulo Rónai conheceu um astrólogo. O homem previu que ele escaparia do campo e viveria em uma terra longínqua, com uma nova carreira. O vidente só não disse que essa carreira o faria ter uma biblioteca tão disputada.
Fonte: O Globo | Maurício Meireles