Segue o debate sobre a função dos eventos literários no Brasil
Alhos e bugalhos. Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Suzana Vargas, na edição passada do Prosa, comparou (no artigo “O que se festeja nas festas literárias?”) eventos com eventualidade. O jogo de palavras é saudável, mas às vezes ilude. Não tem sentido comparar a realização de eventos literários, sejam quais for, com a necessidade de se educar uma população e aumentar o índice de leitura — mesmo que isso ocorra, em muitos casos.
Em primeiro lugar, eventos não são necessariamente, eventuais. A Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) é um evento e não é eventual. Realiza-se todos os anos. O projeto “Sempre um Papo”, que realizo há 29 anos, bate a marca das 5 mil atividades realizadas. E os exemplos de programas consistentes pelo Brasil, como o Fliaraxá, a Fliporto, a Feira de Porto Alegre e tantos outros, nos ultrapassam. Em recente debate no Salão do Livro de Paris, dividi a mesa com Jean Zarzana, falando exatamente deste tema — “A relevância dos eventos literários no Brasil e a questão da leitura” —, ao lado de Antônio Campos e Guiomar de Grammont. Zarzana, curador de 13 das 15 edições do Salão do Livro, é reticente com relação ao assunto: “não tenho a mínima ideia se os Salões do Livro que realizei aumentaram o índice de leitura”, disse, “mas sei do impacto que eles produziram no mercado”.
Esta é a função dos salões, feiras, festivais e bienais: dessacralizar o livro. Somente popularizando este produto ornado de mitologia é que a população vai ler mais. Mas este não é o centro da questão, ainda. O que deve ser dito, de uma vez por todas, é que o principal objetivo dos eventos literários não é o aumento dos índices da leitura no Brasil. E Suzana tem toda razão em seu texto. Isso é tarefa da educação formal. Um dos países que detém os mais altos índices de leitura no mundo é a França. E lá o livro é tratado como tal: um negócio. E dos mais rentáveis da economia. No Salão do Livro de Paris, assim com o de outros países, o que vale é o bom funcionamento do motor: o autor está ali para o livro ser vendido. Por que no Brasil existe tanto pudor em assumir isso? Por que tanta firula e discussões inócuas? O escritor quer, claro, ser reconhecido. Mas o reconhecimento se dá de uma só forma: em vendas. Ou existe escritor que vendeu 10 exemplares e é um sucesso?
No Brasil, há um moto-contínuo terrível, decorrente do mito que demoniza quem vende muito. Paulo Coelho é o ícone deste ritual estúpido. Antes, porém, Tom Jobim já preconizava isso em frases célebres sobre a fama. Os índices de leitura na França são altíssimos porque não se discute isso. Livro é para ser vendido e lido, de preferência. Mas antes de ser lido, vendido. E basta. Vejam a reação divertida do Milton Hatoum, ao ser eleito a estrela do Salão do Livro: “Não quero vender muito, porque se eu for chamado de best-seller, no Brasil, fica ruim…” A participação dos autores brasileiros no Salão foi sensacional. A despeito da forma como os escritores foram tratados pela organização, com honorários vergonhosos, os debates foram ótimos. Mas vejam: dê-se o devido crédito às editoras francesas, às entidades do livro e à Academia, que compuseram uma excelente programação paralela, entupindo a agenda dos autores de atividades. Uma palavra a mais: Luiz Ruffato foi a grande estrela do Salão. E isso ninguém disse. E ele não foi convidado pela organização brasileira e sim pelas suas editoras naquele país. Desde o discurso em Frankfurt, o mineiro Ruffato segue carreira solo, e brilhante, pelo mundo.
A eterna e complexa discussão do preço do livro, por exemplo, encontrou um oásis no Fliaraxá. Um acordo entre a rede Leitura e os organizadores colocou um contraponto nesta questão. A mais recente edição vendeu 40 mil livros em 4 dias. Como? A livraria colocou mais de 15 mil livros para vender com preços entre R$ 1 e R$ 10. Tornou-se, assim, o coração do Festival. De crianças a operários, ninguém saiu dali sem um livro debaixo do braço.
De resto, é importante dizer também que hoje vivemos o momento do autor. Não vale mais o livro, como objeto. Antigamente, o escritor passava anos escrevendo um livro e, por ele, era celebrado, e convidado. E vinha, cheio de graça, desfrutar de seu esforço solitário e criativo, metamorfoseado em páginas de um livro. Hoje, não. Hoje é o tempo do autor, da sua fala, da sua presença. O livro é sua extensão, seu… produto (palavra áspera, para os puritanos).
Esta é a verdadeira tarefa dos eventos literários: colocar autor e livro, postos frente a uma mesa de autógrafos, pronto para vender sua obra. Colocar o autor à frente de uma mesa de debates e seus leitores, na próspera tarefa de divulgar seu livro. Colocar o livro e a literatura em seu devido papel: fundamento e alicerce das outras artes. Aí entra a festa, o festival, com o cinema e as artes cênicas como atração, mas em segundo plano. Cada macaco no seu lugar. Ou, no caso, cada coruja em seu galho.
* Afonso Borges é gestor cultural, criador do projeto “Sempre Um Papo” e curador do Festival Literário de Araxá (Fliaraxá)
Fonte: O Globo | Afonso Borges