Cristian Santos*
Embora ninguém saiba ao certo se a proposta de criação da Biblioteca do Congresso Nacional brasileiro vingará, o burburinho produzido em torno da fala do Presidente do Senado tem lá sua razão de ser. Afinal de contas, Renan Calheiros já deu mostras de que não é homem de jogar palavras ao vento. Em 2013, extinguiu o serviço médico do Senado, lotando os seus profissionais em hospitais públicos e cedendo os equipamentos à Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Com essa medida, cortou gastos e posou de bom gestor público. É possível que dentro dessa mesma linha extinga a Biblioteca do Senado e transfira o seu acervo e seu pessoal para a Biblioteca da Câmara dos Deputados. Talvez apresente, em comunhão com o Eduardo Cunha, um projeto de lei criando a Biblioteca do Congresso Nacional.
Embora se trate de uma proposta defendida há anos por gente gabaritadíssima, como o saudoso Edson Nery da Fonseca, desde o que dia que Renan comunicou seu desejo de criar a Library of Congress brasileira, alguns colegas se inflamaram, resolutamente decididos a deslegitimarem a ideia. Achei o máximo. Admito que, embora me oponha a touradas, adoro arenas povoadas por humanos, munidos de um instrumento bélico poderoso chamado “palavra”. Compartilho com Karl Popper da ideia de que o valor de todo diálogo depende, particularmente, da multiplicidade de opiniões concorrentes, o que não nos libera, evidentemente, de cultivarmos a razoabilidade no processo de argumentação. No caso particular em questão, antes de nos preocuparmos com os porquês do presidente Renan, campo nebuloso e praticamente insondável, me pareceria mais adequado nos questionarmos a respeito das possíveis perdas e/ou ganhos da sociedade brasileira se tal projeto se concretizar. Não penso estar chovendo no molhado. Muitas das estratégias adotadas para invalidar a proposta me pareceram equivocadas e, em não poucos casos, injustas.
A primeira delas, e talvez a menos franca, transforma o presidente do Senado numa espécie de inimigo confesso dos livros e dos bibliotecários. O argumento é rasteiro: Renan jamais pisou no hall da biblioteca Acadêmico Luis Vianna, o que o transformaria num tipo suspeitíssimo, sempre pronto a perseguir pessoas e entidades dedicadas ao trabalho intelectual. Alguns colegas chegam a pintá-lo tenebrosamente, taxando-o de sujeito insensível ao universo da cultura. Outros, ainda mais apaixonados, o acusam de ser um biblioclasta decidido a dar cabo ao árduo trabalho desenvolvido por gerações de bibliotecários. Segundo esses últimos, Renan mereceria ser lançado no rio Flegetonte, mantendo acima da superfície, somente as suas vastas sobrancelhas. Essa leitura beira ao patético. Embora não seja um imortal da ABL, Renan é um marimbondo de fogo capaz de transformar um limão numa saborosa limonada. Pouca gente sabe, mas a decisão, caso saia do papel, atenderia os termos de um relatório produzido pela Fundação Getúlio Vargas a pedido do então presidente do Senado, José Sarney, que propunha, além da fusão dos serviços médicos, a união das bibliotecas das duas Casas Legislativas. Se Sarney preferiu se fazer de rogado, evitando arranhar sua imagem de imortal, Renan incorporou o papel de gestor eficiente. Ponto para o marimbondo de fogo!
Como cultivo bons sentimentos em relação ao meu próximo, me esforço para acreditar que Renan esteja convencido de que a Biblioteca não atende, convenientemente, seu fim. Simples assim. Renan, nesse caso, não se oporia a figura da Biblioteca propriamente dita, mas a um modus operandi considerado vultoso e ineficiente para a sociedade brasileira. Será mesmo?
A segunda tese recorrente nos círculos bibliotecários é a ideia de que Renan não tem sustentação jurídica, haja vista inexistir no sistema legislativo brasileiro a figura do Congresso Nacional. A pretensa solidez do argumento se converte em uma poça d’água ao contato com os primeiros raios de luz. Desde a época da minha graduação, esta fala tem servido de sustentação contra qualquer tentativa de fusão e/ou criação de uma biblioteca única e forte para o legislativo federal. Um projeto de lei poderia sanar o que parece incurável. As duas teses acima – uma acusando Renan de ser um troglodita ou rechaçando juridicamente a sua proposta – me parecem ingênuas. A primeira, na verdade, me soa pueril e arrogante. A segunda, arrogante e pueril. Jamais esperei que um gestor público tenha ímpetos afetivos em relação a bibliotecas e assuntos afins, como fez o bispo Richard de Bury, em seu Philobiblon. Apenas ambiciono e trabalho para que o povo a quem servimos seja informado a respeito de suas decisões.
Nesse sentido, minha sugestão é que abandonemos teses ofensivas e jurídicas, e enfrentemos, corajosamente, a interrogação que nos diz respeito: o que a sociedade brasileira perderia e/ou ganharia com a fusão das Bibliotecas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal? Há diversos modos para se responder isso: uma estratégia bem simples seria a criação de uma enquete no site das duas Casas Legislativas. Deixemos que o povo fale a respeito, inclusive os bibliotecários. Contudo, isso me parece insuficiente. Precisamos elucidar, por meio de dados claros, o que não parece óbvio nem mesmo para os nossos colegas de profissão: 1) Por que as bibliotecas da Câmara e do Senado continuam adquirindo, basicamente, desde o século XIX, os mesmos materiais bibliográficos?; 2) O que as impede de firmarem, conjuntamente, uma política de desenvolvimento de coleções, que otimize o uso do acervo e dos espaço físico, reduzindo o gasto orçamentário?; 3) Não seria benéfico para o Legislativo Federal estabelecer um serviço unificado de pesquisa?; 4) Por que as duas bibliotecas, embora atendendo demandas de informação tão próximas, não se dialogam em relação aos seus produtos e serviços? Quem sabe a ferroada do maribondo nos impulsione a convertermos a RVBI numa rede de fato. Com a palavra, os bibliotecários da Câmara e do Senado.
Texto publicado originalmente na Revista Eletrônica da ABDF.
* Cristian Santos é Pós-doutorando em História pela Casa de Rui Barbosa. Doutor em Literatura e Práticas Sociais pela Universidade de Brasília. Mestre em Ciência da Informação, graduado em Filosofia, Tradução, Biblioteconomia e Letras (Língua e Literatura Francesas). Foi bibliotecário do Superior Tribunal de Justiça durante dez anos. Atualmente é bibliotecário da Câmara dos Deputados.