Alguns bons anos atrás (2003?) numa visita à casa do Professor Edson Nery, guiada pela Professora Gilda Verri, escutei do professor emérito da UNB uma frase mais ou menos assim: os bibliotecários tem que deixar a catalogação e os tecnicismos para as máquinas e se preocupar com o outro. Guardei isso.
De uns tempos pra cá somos bombardeados por notícias de fim de profissões, de automação desenfreada, de futuro ultratecnologico e etc. E reencontrei aquele pensamento vendo o vídeo do Murilo Gun.
Tenho certeza que se perguntarmos a qualquer pessoa se a biblioteconomia tem os dias contados a resposta será sim. Óbvio. Temos tudo pronto: códigos, regras, normas, padrões, rotinas. É só jogar tudo numa máquina e era uma vez uma profissão.
A primeira pesquisa mais séria que fiz, orientada pelo professor Guilherme Ataide, foi justamente sobre chatbots. Inteligência artificial para atuar no serviço de referência. Tipo, o chatbot responderia aquelas consultas lá colocadas pelo Grogan.
Isso tudo sempre me fascinou mas agora é como se finalmente fosse uma realidade.
O que nos diferencia de uma máquina? Ou melhor, o que diferencia o bibliotecário de uma máquina? Ou melhor ainda, o que faz um bibliotecário que uma máquina não pode fazer melhor?
Uma das nossas missões mais nobres, que é a salvaguarda dos registros do conhecimento, nos foi tirada. Não somos mais fundamentais para isso, pois o conhecimento do nosso mundo estará mais seguro em servidores espalhados ao redor do mundo. O Google guarda, armazena, cataloga, classifica, indexa, busca e encontra qualquer coisa melhor que nós. O que nos resta?
O Murilo Gun cita o paper de Oxford que é uma ampla pesquisa sobre o futuro das profissões. E de 702 profissões sabe qual a posição do librarian? Bem ali no meio da tabela, na 360ª posição. Nosso copo está enchendo ou está esvaziando?
Basicamente, as atividades que puderem ser substituídas por máquinas serão. E quais são essas atividades? Todas aquelas que essencialmente dependem de inteligência lógica, matemática, espacial, linguística. Os computadores já avançaram bastante nessas inteligências e são melhores do que nós. É engraçado pois na biblioteconomia/ciência da informação/documentação nós desenvolvemos isso desde lá atrás, talvez sejamos a primeira profissão a utilizar inteligência artificial ainda que rudimentar(o que é uma lista de assuntos senão uma inteligência artificial?), pois fomos uma das primeiras profissões a ter padrões bem estabelecidos para esses testes (insight das aulas do Professor Marcos Galindo). Ou seja, estamos cavando nossa própria cova. Toda vez que alguém cria uma ontologia morrem algumas vagas de bibliotecários.
Olhando a grade curricular do curso de biblioteconomia da USP(pode ser de qualquer um), vemos lá disciplinas que as máquinas fazem melhor do que nós. Tipo, estamos estudando para concorrer uma disputa já perdida. Não apenas não estamos nos preparando para o presente como não estamos nos preparando para o futuro. Deveríamos estudar mais psicologia do que linguagens documentarias.
Dentro disso tudo, vejo a biblioteconomia num encruzilhada. A biblioteca, outrora hospital das almas, passou a ser estoque de informação. Porém o presente mostra que precisamos mesmo é de uma biblioteca que seja mais humana.
Dentro da biblioteca, como já abordei em outro post, algumas seções/departamentos/funções vão sumir do mapa. O setor de desenvolvimento de coleções é um deles. Seleção, descarte, desbaste, etc não serão necessários. Os funcionários do setor de circulação para atender, emprestar livros, repor livros nas estantes e fazer shiiiii também estão com os dias contados. Acho que shiiiiii vai demorar um pouco mais pois as bibliotecas permanecerão como espaço de convivência. Apenas bibliotecas que guardem livros físicos terão necessidade de empregar pessoas que lidem com restauração e preservação. Mas estes também perderão seus empregos na maioria das bibliotecas. Catalogadores, indexadores, resumidores e normalizadores: é o fim da linha. Acabou.
Os bibliotecários de referência natos, os servum servorum scientiae, esses ficarão, cada vez mais necessários diante da torrente de informação. Os que souberem trabalhar as competências informacionais também creio que tem seu espaço. Biblioterapia, então, poderá crescer bastante já que os bibliotecários poderão se preocupar mais em receitar livros.
Talvez seja por isso que estamos ali no meio das profissões. Parte da biblioteconomia tem tudo pra morrer e a outra parte tem tudo pra crescer. Cabe-nos encontrar a parte onde estamos.
Tudo é uma visão de futuro. Mas já está acontecendo.