“Sou muito realista sobre a minha situação. Mas você está onde sua mente está, e os livros me levam para a liberdade. O ‘Tuareg’, do espanhol Alberto Vázquez Figueroa, me levou para os desertos da África”, reflete José Antônio Junio Silva, 32. Preso há dez anos, com sentença de 39 e passagem pela Penitenciária Nelson Hungria, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, ele hoje cumpre pena na Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (Apac) de Nova Lima, também na região metropolitana, e cursa o terceiro período de administração da Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais (Fead), graças a uma parceria com a Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds).
Silva já abateu 80 dias de sua sentença lendo e resenhando obras como “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoiévski, “O Monge e o Executivo”, de James Hunter, e o seu preferido: “Os Miseráveis”, de Victor Hugo. “Que livro lindo, não é?”, observa.
Estimulado pela possibilidade de antecipar a liberdade, o detento conta que a remição da pena pelos livros o modificou em tudo, inclusive ajudando a conhecer seu espaço no mundo. “Essa prática é propícia para matar o criminoso que existia dentro de mim e me levar a descobrir novas possibilidades”, afirma de modo convicto e eloquente.
Os resumos que faz são corrigidos por uma professora voluntária, com quem debate o conteúdo. Ortografia, concordância ou pontuação: nada passa despercebido. Depois, as resenhas são reescritas e entregues ao fórum para que seja computada a redução. “Com certeza sairei daqui melhor do que entrei”, assegura ele, que está próximo a conquistar o regime semiaberto.
Diretor artístico do Conselho de Sinceridade e Solidariedade da unidade prisional em Nova Lima, Vinícios Athanazio, 33, tem 35 anos de pena a cumprir: 12.775 dias. Até agora, já abateu 64 dias por meio da leitura e espera, ainda, ter outros 1.636 dias a menos na prisão lendo e resenhando. “Esse volume de leitura me ajudou a limpar e aprimorar o meu vocabulário, que era restrito à linguagem de rua. Conheci o filósofo alemão Arthur Schopenhauer e a busca pela felicidade”, diz com a voz baixa e segura.
Com pena menor – 12 anos a cumprir –, mas também empenhado na leitura, Alan Nataniel Bitencourt, 24, é responsável pela biblioteca da Apac Nova Lima, que tem cerca de 1.500 volumes. Ele já leu e resenhou “Nunca Desista de Seus Sonhos”, de Augusto Cury, e “Perseguição”, de Alexandre Martinelli. “Não me identifico com crônicas, gosto mesmo é de histórias políticas”, diz. Ele explica que, além da remição de pena, a leitura ajuda aqueles que querem fazer o Enem prisional. “A redação, assim como as resenhas que fazemos, exige que saibamos argumentar e mostrar conhecimento próprio sobre temas da atualidade”.
A diretora da Apac Nova Lima, Sônia Tibo, afirma que não há proibição sobre o que ler, mas temas mais leves são sugeridos. “Temos uma orientação para assuntos e textos que valorizem a família, por exemplo. Violência e pornografia não constam em nossa biblioteca”, diz a diretora.
Leitura pode ser até terapia
Para o presidente da Academia Mineira de Letras, Olavo Celso Romano, em um mundo em que se vive confinado, a leitura e a escrita podem ser oportunidade de comunicação com o exterior. “Pode funcionar até como uma terapia, por levar à reflexão a partir de uma angústia”, diz
Em setembro, ele participou de um concurso literário na penitenciária de Conselheiro Lafaiete, que abriga 200 detentos. Segundo ele, 35% dos internos enviaram textos. “Aquele que tem disposição de ler mostra que, apesar de preso, não está mentalmente confinado”.
Para ele, a adesão à leitura significa que o detento tem esperança na possibilidade de construir um mundo novo de dentro para fora. “O ato de ler pode ser um farol, um guia para o peso do cárcere”, resume.
Enem prisional dá oportunidade
Na última edição do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para pessoas privadas de liberdade e jovens sob medida socioeducativa, chamado de “Enem Pessoas Privadas de Liberdade (PPL)”, em dezembro de 2014, houve 38,1 mil candidatos no país, 6.099 deles em Minas, o segundo Estado com mais inscritos, atrás apenas de São Paulo. Foram aplicadas a redação e as provas de matemática, linguagens e códigos, em 27 unidades prisionais.
De acordo com o Observatório da Educação, uma das poucas diferenças entre as duas avaliações é a data. Enquanto o Enem tradicional foi realizado ontem e anteontem, o PPL – ou Enem prisional – será em 1 e 2 de dezembro.
Os candidatos são tratados com a mesma exigência. As avaliações são aplicadas em ambiente semelhante a uma escola, na própria unidade onde o detento cumpre pena, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Devido à diferença de datas, mudam-se as questões e o tema da redação. A estrutura e o nível de dificuldade das provas são mantidos. O tempo necessário para fazer a prova é o mesmo: 4h30 no primeiro dia e 5h30 no segundo.
Objetivos
Os detentos podem usar a nota para comprovar a conclusão do ensino médio ou tentar vaga em instituição superior que atenda presos.
A forma de cálculo da avaliação é a mesma, a partir da Teoria de Resposta ao Item (TRI), cuja soma final não é a quantidade de acertos, mas a qualidade das respostas.
Fonte: O Tempo | Raquel Ayres