Com resenhas mensais, presos podem conseguir 48 dias a menos por ano. Além de penas menores, detentos adquirem hábito pela leitura na cidade.
Há pouco mais de 1 ano de completar a pena, a detenta Krislaine Ferreira de Paula, de 33 anos, encontrou em um projeto de leitura dentro do Presídio de Poços de Caldas (MG) uma forma de passar o tempo, conhecer outros mundos e reduzir dias na própria sentença, por meio da remissão.
E ela não é única. Ao todo, 54 detentos que estão no presídio participam da iniciativa criada pelo professor Davidson Sepini Gonçalves, de 53 anos, que considera o projeto, que teve início há 10 meses, como um divisor na vida dele e dos detentos.
“O projeto mexeu em toda minha vida. Existe um Davidson antes e depois do projeto de leitura. Quando estou no presídio, entro em contato com o ser humano em outra condição e isso mexe muito comigo. Quando chego em casa, fico pensando nisso. Mas me mudou muito. Me humanizou. Não consigo deixar de vê-los como iguais a mim”, disse o professor.
Em todo Estado de Minas Gerais, apenas três presídios recebem o projeto. O único deles no Sul de Minas é o de Poços de Caldas. Os outros dois são em Governador Valadares (MG) e Itabira (MG). O projeto também segue uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que prevê o incentivo á leitura em todos os presídios do Brasil.
E o professor, que no início da carreira se formou em ciências contábeis e trabalhou durante 17 anos em uma instituição bancária, largou mão da vida com os números para se dedicar à área de humanas. E desde então graduou-se em psicologia, filosofia e letras, além de ter se especializado em outras áreas e agora fazer doutorado em educação na Unesp, de Rio Claro (SP), para onde produz uma tese baseada no projeto com os detentos de Poços.
Na prática, uma vez por semana o professor responsável pelo projeto vai acompanhado de alunos do curso de psicologia até o presídio e no pátio, eles se reúnem com os detentos e detentas interessados no projeto. Ali, é feito um atendimento individual, onde a obra escolhida é debatida e o preso orientado sobre como fazer a resenha.
Por mês, cada detento pode apresentar uma resenha, que se aprovada por uma comissão composta por três pessoas de dentro do presídio e três de fora, vale como remissão de quatro dias na pena. Por ano, cada preso pode apresentar 12 resenhas, totalizando a redução de 48 dias da sentença.
“Desde que começamos o projeto já tivemos 40 resenhas aprovadas, 20 aguardando aprovação e mais de 100 livros circulando no presídio entre os detentos. Para fazer este trabalho busquei bastante referencial teórico e muito do que encontrei diz que a leitura transforma a vida das pessoas, melhorando os níveis de alfabetização, de criticidade, resinificando a própria vida a partir da literatura. No presídio, os detentos pedem alguns títulos. Tem um peruano que pediu livros em espanhol, tem um rapaz que gosta de livros sobre futebol e uma moça que pediu Christiane F.”, contou o professor, que ao final do trabalho acadêmico, deve apresentar novos resultados sobre a leitura na cadeia.
Remissão a partir dos livros
O economista Sebastião de Oliveira, de 61 anos, conhecido como Tião também participa do projeto. Condenado há 2 anos de prisão pelo crime de estelionato, ele contou que já leu dezenas de livros e começou, inclusive, a escrever um volume em que gostaria de contar a própria história. “Por incentivo do professor Davidson, eu enchi três cadernos com escritos meus. Cheguei a fazer oito capítulos do que seria um livro, mas fui transferido e quando voltei, isso tinha extraviado. Agora, vou esperar estar em liberdade para escrever direto no computador”, contou.
As histórias de Ágatha Christie e títulos como Poderoso Chefão, A Casa das Sete Mulheres, entre outros fazem a diferença na vida de Tião. “Apesar das dificuldades, como não ter luz direito na cela, eu leio bastante e ocupo a mente. Vale a pena. Não faço isso nem tanto pela remissão, mas mais pelo prazer de ler mesmo”, comentou.
Assim como ele, Krislaine também lê bastante. Desde que está na cadeia, há quatro meses, já leu 20 livros. O que mais gostou foi “Quando a resposta é só Jesus”. “Eu gosto demais de ler. Deus me libertou porque eu estava presa psicologicamente há 20 anos pela droga e agora meu corpo está preso, mas minha mente está liberta”, comentou.
Encarcerada, ela diz que sente falta da filha, a pequena Valentina, de 5 anos. “Eu espero cumprir bem minha sentença e sair. Toda noite, quando vou me deitar, lembro que li e lembro da minha filha. Ela sempre me pedia para ler as historinhas para ela”.
O detento Claudemir José Leonardo, de 47 anos, já cumpriu 5 meses dos 9 anos de prisão que foi condenado e, a cada dia que passa, toma ainda mais gosto pela leitura. Durante esta reportagem feita pelo G1, ele lia “Ninguém escreve ao Coronel”, do mexicano Gabriel Garcia Marquez.
“No começo não me prendeu muito não, mas lá pelo meio a história fica boa. Conta o caso de um coronel que fica à espera de uma carta para receber a aposentadoria e está sempre acompanhado de um galo, que era um galo de rinha. Agora quero chegar ao final e ver se ele receber a carta e consegue se aposentar”, relatou ao professor.
Além da resenha, ele tem outra preocupação: o capricho. Faz questão de, ao entregar os escritos sobre o livro, ilustrar os papéis com alguma imagem que remeta à história. Isso não reduz a pena, mas para ele, é tão importante quanto o resumo. “Eu faço uma capa para deixar o trabalho mais apresentável, mais completo. É sempre bom a gente se empenhar mais, né?”, disse.
Mudanças na instituição e para além dela
Por outro lado, o projeto não beneficia apenas os detentos. Segundo o diretor do presídio, Adriano de Souza Silva, a iniciativa contribuiu para toda a unidade carcerária. “Quando assumimos este presídio, em julho de 2014, os detentos não tinham projeto social nenhum. Eles ficavam apenas encarcerados e agora estamos tentando implantar algumas coisas aqui que possam trazer a ressocialização deles. O projeto de leitura surgiu por iniciativa própria do professor Davidson e eu costumo dizer que ele foi uma luz para nós. No início a adesão foi mais completada, mas a literatura está transformando esse pessoal que está preso”, comentou.
Já para os estudantes de psicologia que acompanham o projeto de extensão, a iniciativa também modificou a vida deles. A jovem Nathalia Roque Virgili, de 19 anos, sempre teve interesse por assuntos ligados ao sistema carcerário. “Eu sempre gostei de estudar isso e agora surgiu a primeira oportunidade de entrar no presídio e vivenciar, mesmo que superficialmente, o que ocorre [aqui] dentro”, revelou.
O mesmo ocorreu com o estudante Fabrício Gregório Freitas, de 18 anos. “Sempre quis conhecer o sistema penitenciário e sempre achei que os encarcerados merecem uma chance de reconstruir a vida. O projeto traz isso. Estou feliz de participar”, pontuou o aluno.
E tais citações vão ao encontro da pesquisa de doutorado da economista Kalinca Léia Becker, feita na Universidade de São Paulo (USP), que mostra que a cada investimento de 1% na educação, 0,1% do índice de criminalidade é reduzido.
Projeto de sala de leitura
Para dar sequência ao projeto, o professor Davidson contou com a ajuda do curso de arquitetura da PUC para a confecção de uma maquete. De acordo com ele, o projeto seria o espaço ideal de uma sala de leitura para os detentos.
“Nossa ideia é ter sala de aula, espaço para artesanato, área para atendimento psicológico, área para segurança e a biblioteca”, disse.
O espaço para isso existe. Assim como a mão de obra, que pode vir dos próprios detentos. O Claudemir já se dispôs a ajudar. “Eu trabalhava como pedreiro lá fora. Seria um prazer ajudar aqui dentro”, pontuou.
Fonte: G1 |Jéssica Balbino