A Bibliotecária e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Cristina Dotta Ortega, lançou em junho de 2024, o livro Organizar para socializar: A função social da mediação documentária, uma obra que propõe uma reflexão profunda sobre os processos de organização da informação e sua função social. A autora explora como as ações de mediação documentária, essenciais para a comunicação entre documentos e seus públicos, são cruciais para garantir o acesso e a apropriação da informação.
O livro aborda a organização da informação como um conjunto de processos que facilitam a navegação, busca e uso de documentos, ampliando a compreensão sobre o papel da mediação documentária em diversos contextos. Ortega destaca a importância dessas práticas, não apenas no campo acadêmico, mas também na sociedade, enfatizando seu impacto na democratização do acesso à informação.
Com as versões digital e física já disponível, o livro pode ser acessado através do endereço https://4et.us/snd6uu. A autora compartilha sua vasta experiência e conhecimento, convidando o público a refletir sobre o papel fundamental da organização da informação no mundo contemporâneo.
Leia a entrevista exclusiva com a Cristina. Em uma conversa reveladora, ela explica como a organização da informação e a mediação documentária são fundamentais para ampliar o acesso e uso da informação na sociedade.
– Como você entende o papel da organização da informação na mediação documentária? De que maneira a organização e a categorização dos documentos impactam o acesso e a compreensão por parte do público?
Podemos dizer que as ações de mediação documentária em abordagem bibliográfica são o objeto do campo da Biblioteconomia. Trata-se de ações de mediação entre documentos e públicos, cujo objetivo é o de produzir condições para a apropriação da informação por estes. Essas ações referem-se à produção de mensagens organizadas sistemicamente sobre objetos e seus mecanismos de navegação e busca, que são mobilizadas pela produção e oferta de produtos, serviços e demais atividades, potencializando e qualificando seu acesso e uso. A comunicação com o público – tornada possível pelas condições criadas por essas ações de mediação – é que permite que a apropriação da informação por cada indivíduo se efetive.
As ações de mediação documentária são realizadas por meio de processos específicos, dentre os quais estão os processos de organização da informação. Ela exerce papel central no conjunto das ações de mediação documentária. Não significa que os processos de organização da informação são mais importantes que os outros processos, porque tudo que é ação de mediação documentária é importante para que ela funcione como tal. A organização da informação é a força motriz da mediação documentária. Ampliando o olhar sobre organização da informação, podemos dizer ainda que, como todos os processos envolvem leitura, seleção e sistematização frente a um público, a organização da informação está sempre posta, ou seja, suas premissas estão presentes para além de seus processos de representação documentária que lhe definem especificamente.
A mediação documentária, a exemplo de toda mediação, deve significar. É porque significam que as ações de mediação documentária ganham validade social via comunicação. A instrumentalidade e a visão sistêmica empregadas são adotadas como modo de viabilizar concretamente a comunicação da informação. A organização da informação, sendo central no conjunto das ações de mediação documentária, respondem em grande medida pela função social do campo que, como indicamos acima, é produzir condições para a apropriação da informação. É preciso ter em conta a apropriação da informação, mas ela não se configura propriamente como objeto de estudo do campo das ações de mediação documentária: de outra maneira: realiza-se a mediação que permite a comunicação como condição geral para a apropriação.
Para que a comunicação ocorra, o usuário deve realizar a atividade de seleção. Essa seleção pelo usuário é orientada por um conjunto de objetos selecionados e recriados (materialmente) como representações daqueles, a partir de relações que lhe fornecem estatuto simbólico. As representações documentárias são formas significantes, portanto, verdadeiras estruturas mediadoras que potencializam, orientam e qualificam a seleção pelo usuário. Elas fornecem recursos que operam como percursos cognitivos possíveis e diversos que permitem aos usuários sua inserção no mundo da cultura, por meio de processos contínuos de apropriação da informação.
– O que distingue a mediação documentária de outros tipos de mediação, como a mediação tecnológica e cultural?
A mediação documentária tem relação, mas não se confunde, com a mediação tecnológica e a mediação cultural. Não se trata de mediação cultural, embora os documentos e as informações a eles atribuídas, tendo um público em vista, sejam elementos da cultura. Também não se trata de mediação tecnológica, ainda que o registro e o processamento por meio de recursos tecnológicos (digitais ou não) sejam necessários para a busca por documentos e o modo como eles são realizados influenciam a apropriação possível. De fato, a tecnologia (incluindo as anteriores à tecnologia eletrônica) são elemento intrínseco do campo.
Explorar os modos de circulação e uso de informação entre certos grupos ou certas pessoas quanto a questões mediadoras sob vieses sociológicos, cognitivos, políticos, culturais, tecnológicos e outros, pode incluir o estudo da mediação documentária, mas não considera suas particularidades, já que seu campo de visão não permite aprofundamento. Na mediação documentária, medeia-se informação de documentos frente a públicos via sistemas, produtos e serviços, além de outras atividades de sensibilização que permitam fomentar o uso qualificado das informações.
Frente à necessária identificação das mediações variadas que compõem a mediação documentária, falta reconhecer que elas não podem ser tratadas de modo produtivo à falta das referências do campo que está sendo estudado. O reconhecimento de que vários modos de mediação estruturam o campo da mediação documentária exige que o lugar e o peso de cada modo mediador sejam considerados em relação à mediação documentária, sob pena de se obscurecer a singularidade do campo e seu caráter intelectual e social. Apenas o uso discriminado de termos e conceitos contribui para a consolidação do campo ao estabelecer as características que lhe são próprias, permitindo evidenciá-lo. Fora dessas condições, não se pode falar propriamente em ações de mediação documentária.
– Em sua visão, como a evolução tecnológica tem impactado os processos de organização da informação e, consequentemente, a mediação documentária? Quais são os principais desafios e oportunidades nesse cenário?
Como foi dito, a tecnologia (não apenas a eletrônica) é elemento intrínseco do campo. A tecnologia realiza a concretização dos sistemas e produtos de informação. A despeito disso, as tecnologias são em geral abordadas à falta de profundidade, considerando-se, por exemplo, apenas a tecnologia eletrônica e não o significado mais amplo do aspecto tecnológico no campo, ou tomando-se a tecnologia como categoria que explica por si mesma os aspectos lógico-semânticos e terminológicos em jogo que permitiriam a mediação com públicos.
É importante considerar que a dimensão histórico-conceitual da atividade documentária nos permite compreender o papel exercido pelas tecnologias para além do apelo do discurso sobre o novo. A tecnologia molda, mas não determina os processos. Estes são dependentes da maturidade metodológica do campo. Os recursos tecnológicos, em função do estágio de desenvolvimento em que se encontram a cada época, são sempre limitantes das aplicações possíveis.
– Você acredita que a capacidade dos sistemas de “falarem a mesma língua” ajuda os Bibliotecários a oferecerem um serviço melhor aos seus usuários?
Os sistemas de informação, como as bases de dados (catálogos de biblioteca, repositórios institucionais, sistemas de informação científica, bases de dados de análise bibliométrica, entre muitos outros), assim como os arranjos, são recursos mediadores. Esses sistemas são construídos e geridos no contexto das ações de mediação documentária, cujo fim é o de produzir condições para a apropriação da informação por um público. Os sistemas de informação são constituídos por mensagens sobre documentos para um público. Antes de tudo, está em questão a ‘língua’ dos documentos e dos públicos, que é adotada na elaboração das mensagens, para que haja maiores possibilidades de a comunicação ocorrer e, então produzir condições de apropriação. Se não houver mensagens relativas aos elementos sendo mediados, não pode ocorrer comunicação, muito menos apropriação.
Mas, há outros aspectos a considerar.
O primeiro deles, de ordem abstrata, é o do conhecimento teórico-metodológico adotado nos processos documentários. Não se trata propriamente de uma mesma língua, mas podemos falar em um conhecimento coletivo, ou o que chamamos de ciência. É esse conhecimento que permite a produção de instrumentos documentários para uso em cada sistema de informação, ou a adaptação de instrumentos já existentes. À falta dessa produção/adaptação local, temos a impossibilidade da mediação.
O outro aspecto está relacionado ao conhecimento do campo, mas é de ordem econômica. Trata-se da adoção coletiva de padrões de descrição de documentos, visando evitar duplicação de trabalho e realizando o compartilhamento dos registros produzidos. Importante registrar que, também neste caso, não se trata propriamente de falar a mesma língua, já que adota-se padrões (prescrições), não línguas. Como decorrência, cada registro ‘copiado’ deve necessariamente ser lido e interpretado antes de ser aprovado para uso no sistema. Além disso, a escolha e o modo de uso de padrões exigem reflexão, pois padrões hegemônicos, de forte peso comercial e ideológico, são grandemente presentes no campo.
O domínio do conhecimento do campo e a produção de sistemas e serviços segundo contextos demonstram que a profissão Bibliotecária exige atuação de caráter simultaneamente intelectual e político.