Residindo em Buenos Aires, o belo-horizontino Léo Kildare Louback prepara novos projetos em livro e em teatro
Da pesquisa teatral à escrita literária, o diretor, ator e dramaturgo Léo Kildare Louback constantemente parte de algum dado biográfico para compor as suas criações. Foi assim com a sua primeira montagem, “Como Matar a Mãe – 3 Atos”, em que ele, ao lado das atrizes Fabiane Aguiar e Soraya Martins, colocou em xeque as relações maternas, e com os textos do seu livro de estreia, “Sobre Voo” (ed. Scriptum), lançado no fim do ano passado.
Esse processo, contudo, não resulta em associações diretas, como se os elementos de sua vida servissem a uma espécie de “Big Brother” construído nas páginas ou nos palcos. Como observa a dramaturga, diretora e professora da UFMG Sara Rojo na orelha de “Sobre Voo”, Louback mescla referências que abrem espaço para um “travestismo do eu ficcional”.
“O que norteia o livro é a minha biografia mesmo, mas ela surge ficcionalizada ao ponto de perdermos o caráter de verossimilhança”, observa ele, que em março teve a micropeça “De: Para” encenada pelo ator André Senna na programação do La Movida, na capital mineira e, no segundo semestre, pretende estrear um novo espetáculo, “Dedo na Garganta”, que será um desdobramento desse projeto.
Além disso, ele conta já ter concluído o que será o seu primeiro romance, e, em breve, pretende montar “Como Matar o Pai – 3 Atos”, em Buenos Aires, onde reside atualmente e também trabalha como professor de alemão do Centro Universitário de Idiomas da Universidade de Buenos Aires. “A ideia é retomar o mesmo processo de ‘Como Matar a Mãe’, partindo da investigação das biografias dos três atores, que serão recheadas com fragmentos de outras ficções”, comenta ele.
Em relação a “Dedo na Garganta”, Louback antecipa que este, assim como “De: Para”, vai abordar a questão do suicídio. “‘De: Para’ é baseada numa carta que Caio Fernando Abreu escreveu para Zézim (o jornalista José Márcio Penido) com o intuito de convencer o amigo a evitar o suicídio. Depois, eu pensei em expandir esse projeto, dialogando com a trajetória de escritores como Virginia Woolf e Maiakovski. As trajetórias deles não vão estar presentes na obra, mas de algum modo vão nutrir algumas reflexões sobre um ser que decide se matar”, acrescenta.
Ambiguidade. Ao se interessar pelas aproximações entre realidade e ficção, Louback leva sua escrita à fronteira entre a crônica e o conto em “Sobre Voo”. Em alguns dos escritos, a exemplo de “Devoção” – em que o autor narra a história de um irmão fascinado pela irmã gêmea, a ponto de planejar a morte dela e substituí-la no dia do seu casamento –, fica mais evidente um caráter ficcional, mas na maior parte dos relatos essas duas esferas se confundem.
“Os textos não têm um caráter formal muito específico, então eles ficam nesse limite entre o conto e a crônica. Mas eu reconheço neles os impulsos que me levaram a escrever, e alguns surgem como espécie de vômitos, resíduos de experiências ou histórias com que tive contato”, observa ele, que entende o ingrediente biográfico como algo independente da ideia de fato real.
“Eu penso a questão da biografia muito menos como a historinha que a gente viveu e muito mais como a forma como a gente experienciou esses fatos, o que sobrou no corpo dessa experiência. Essa história dos irmãos mesmo leva a ideia de um ocupar o lugar do outro a um nível exagerado. Essa capacidade de se transformar em outra pessoa é o que me interessava nessa história absurda, que, de alguma forma, trata também da questão do fanatismo e do quanto ele é perigoso”, reflete Louback.
Entre os temas que aparecem de maneira recorrente em seus trabalhos podem ser identificados a morte e a sexualidade. “A reflexão sobre a morte permeia quase tudo que faço, assim como o olhar para a pulsão sexual que todos nós carregamos. Além disso, nos meus textos eu noto uma preocupação muito pequena com perguntas como ‘quando’, ‘onde’, ‘por que’. Há poucas informações sobre o espaço e sobre o motivo de aquilo estar acontecendo. Eu gosto de pensar que o leitor vai também construir um retrato desse cenário junto comigo. Algo como: ‘vem comigo que eu vou te contar um caso e depois faça disso o que você quiser’”, afirma ele.
A violência é outro aspecto que o atrai. No seu primeiro romance, até então intitulado “Da Pele pra Dentro”, ele revela que vai abordar essa questão relacionando-a à infância. “A ideia é tratar da violência a partir das experiências de uma criança e as repercussões disso no corpo dela quando se torna adulta. Ela, então, é alguém que está cheio de histórias remanescentes daquele período”, diz o artista.
Louback reforça que esse personagem não é um espelho dele mesmo. “Ele está num contexto das vidas cruas, o que pode servir tanto para mim quanto para outras milhões de pessoas. Afinal, os berços de ouro são raros e mesmo esses não estão completamente assegurados de ter uma vida tranquila. A passagem da infância para a vida adulta é algo muito difícil”, afirma ele, que identifica nesse percurso a existência de embates diários. “Eu penso que viver pode ser um ato de violência constante”, conclui.
Trecho
“É certo que ninguém sabe exatamente como tudo começou. E também, nada mais normal que um irmão ser fã da própria irmã, tão querida por todos. Certo dia ele foi pego de surpresa ao trocar de roupa no banheiro de casa. Seios. Gritos, muitos gritos. Um verdadeiro escândalo, pra ser exato. Ele saiu correndo pela casa: mãe, pai! Todos vieram rapidamente ver o que tinha acontecido. O que significa isso, ele gritava.
Mãe: Calma meu filho, calma. O que aconteceu?
Pai: Que gritaria é essa? Ei, traga um copo d’água com açúcar para ele.
Mãe: Fale comigo, menino. Você esta tremendo.
Ele mal continha a respiração”.
(Fragmento de “Devoção”)
Fonte: O Tempo