
O Conselho Federal de Biblioteconomia (CFB) e a Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários, Cientistas de Informação e Instituições (FEBAB) publicaram nota de repúdio sobre a iniciativa da Fundação Cultural Palmares (FCP) de excluir parte de seu acervo. De acordo com o relatório “Retrato do Acervo: Doutrinação Marxista”, publicado em 11 de junho, serão excluídos mais de cinco mil livros que, segundo a FCP, promovem pensamentos comunistas, revolucionários e contrários à supremacia da nação.
A retirada dos livros não seguem critérios de seleção estabelecidos pela literatura científica da Biblioteconomia, segundo a professora de História do Livro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). A informação foi retirada deste texto da Biblioo.
Dentre os autores definidos como subversivos, adjetivo comum no período da ditadura militar brasileira (1964-1985), estão Karl Marx, Max Weber, H. G. Wells, Celso Furtado e Marco Antônio Villa.
No dia 17 de junho, o presidente do CFB, Marcos Luiz Cavalcanti de Miranda (CRB-7/4166), concedeu sobre o assunto entrevista ao Canal TV Democracia. Na atração, o Bibliotecário apontou as inconsistências da proposta da FCP e explanou as ações que estão sendo tomadas pelo Conselho Federal contra a retirada das obras.
Quanto a medidas judiciais, o CFB se juntou ao Conselho Regional de Biblioteconomia 1ª Região (CRB-1) para protocolar manifestação no Ministério Público Federal (MPF) sobre o caso. Leia o ofício.
O Conselho Regional de Biblioteconomia 6ª Região Minas Gerais e Espírito Santo (CRB-6) apoia os textos do CFB e da FEBAB, que seguem na íntegra.
Nota de repúdio CFB
O Conselho Federal de Biblioteconomia repudia a decisão da Fundação Palmares de eliminar parte de seu acervo bibliográfico, ignorando, para isso, os critérios técnicos e científicos da Biblioteconomia e dos princípios que regem a Administração Pública.
Embora valendo-se do intitulado “Retrato do Acervo: três décadas de dominação marxista na Fundação Cultural Palmares”, tal documento não se caracteriza como uma política de desenvolvimento de coleções, o que seria esperado de qualquer biblioteca, particularmente se vinculada a um ente federativo. Afora a ausência da participação de Bibliotecários e da comunidade servida em sua elaboração, o documento supracitado estabelece critérios pessoais, insólitos e descabidos, o que pode gerar lesividade ao patrimônio bibliográfico do País.
Ao pretender justificar a eliminação do acervo construído pelas gestões anteriores valendo-se de uma linguagem depreciativa e infundada, a Fundação Palmares expõe a ingerência ideológica numa atividade que deveria primar pela técnica. Ademais, a medida em questão se torna ainda mais gravosa por se tratar de uma biblioteca financiada com dinheiro público, submetida, portanto, aos princípios da indisponibilidade do interesse público pelos administradores do Estado, bem como o da impessoalidade, que devem afastar de seu seio afinidades ou animosidades políticas ou ideológicas.
Este Conselho Federal permanecerá atento em sua missão de garantir bibliotecas acessíveis e plurais, combatendo, assim, toda forma de discriminação e ignorância.
Marcos Luiz Cavalcanti de Miranda (CRB-7/4166)
Presidente do Conselho Federal de Biblioteconomia
Nota de repúdio FEBAB
A informação é um direito humano! Na história do Brasil houve grupos alijados pelos processos coloniais hegemônicos que retiraram o direito à representatividade histórica, cultural, social e informacional de povos negros e indígenas, os quais sofreram com os horrores da escravidão e genocídio. No Brasil que hoje moramos, as populações negras e indígenas seguem em lugares de subordinação, dominação, controle e exploração em prol do grupo de elite dominante.
A construção identitária positivada e os direitos previstos pela Constituição brasileira foram pautas de luta e reivindicações do movimento negro brasileiro, especialmente a partir do início do século XIX e XX, quando se deu a construção da Frente Negra Brasileira, Movimento Negro Unificado, Teatro Experimental do Negro, dentre outros marcos históricos da população negra e população brasileira. Tais marcos foram demarcados por debates sobre a centralidade da raça nas relações sociais e o racismo enquanto construto social que influencia e acaba por determinar as oportunidades fornecidas, os direitos obtidos e os acessos concedidos para que essas populações que sofreram e sofrem com os resquícios da escravidão e da colonialidade em suas esferas do ser, saber e poder. Esses elementos são impeditivos para a construção de uma sociedade justa para todas as pessoas e que se pressupõe ser antirracista, antissexista, antiLGBTQfóbica e democrática de direito.
Um dos pontos em que o campo da Biblioteconomia e áreas correlatas se direcionam é a justiça informacional pelo acesso à informação. Tal acesso é fomentado e proporcionado em bibliotecas e unidades de informação, assim como por instituições e organizações públicas. Dentro dessa esfera, encontra-se a Fundação Cultural Palmares, criada em 1988, com direcionamento para a “promoção e preservação dos valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira” (FUNDAÇÃO…, 2021, s.p.). Esta Fundação possui como princípio o comprometimento para o combate ao racismo, à valorização, organização, preservação e disseminação das culturas e histórias negras, assim como o reconhecimento da contribuição da população negra na construção do povo brasileiro.
Nesse sentido, enquanto pessoas bibliotecárias e profissionais da informação, nos causa extrema tristeza ao constatar a censura praticada no acervo da instituição. Acervo sedimentado por anos de construção participativa e democrática das gestões que antecederam a atual e, cujo valor pelo direito à informação permitiu a construção de um acervo que prioriza não só a diversidade epistêmica que compõe o pensamento negro, seus atores e colaboradores da luta antirracista. Importante dizer que a construção epistemológica da população negra está sedimentada em vertentes marxistas, haja vista autores(as) intelectuais negros(as) como Nilma Lino Gomes, Abdias do Nascimento, Lélia González, Milton Santos, W. E. B. Du Bois, Cedric Robinson e tantos outros que, com suas obras seminais, serviram e servem de inspiração para a insubmissão epistêmica, profissional e ativista da população negra nas mais diversas esferas.
Retirar quaisquer materiais e recursos informacionais que se coloque contra a posição ideológica de governos e/ou gestores sem utilizar metodologias científicas, planejamento de construção e desenvolvimento de acervos e coleções, assim como desconsiderar o papel da profissão bibliotecária para que se realize essa atividade é, no mínimo, agir com censura. Algo que nosso Código de Ética Bibliotecária e nossa profissão repudiam veementemente.
Dessa forma nós da FEBAB, que integra 17 Associações de Bibliotecários, 08 Grupos de Trabalho e 05 Comissões Brasileiras, nos aliamos a outras entidades profissionais e coletivos para pedir que se reverta imediatamente quaisquer ações no tocante ao desbaste dessas coleções pois se configura em grave ameaça ao patrimônio cultural nacional.
Os acervos das instituições são públicos e devem ser preservados e mantidos pelas entidades. Nunca permitiremos que acervos e coleções formados ao longo da história e criados com recursos públicos sejam eliminados.
Esperamos que a Fundação reverta suas ações, bem como conclamamos o Departamento do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas da Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo (DLLLB) e Fundação Biblioteca Nacional para que possam interceder pela salvaguarda desse precioso acervo.
Elaborado pelo Grupo de Trabalho de Relações Étnico-Raciais e Decolonialidades e Diretoria Executiva da FEBAB.
Assinam este documento:
– Associação Alagoana dos Profissionais em Biblioteconomia
– Associação de Bibliotecários e Documentalistas do Estado da Bahia
– Associação dos Bibliotecários do Ceará
– Associação dos Bibliotecários do Distrito Federal
– Associação de Bibliotecários do Espírito Santo
– Associação dos Bibliotecários de Goiás
– Associação Profissional de Bibliotecários do Mato Grosso do Sul
– Associação dos Bibliotecários de Minas Gerais
– Associação Paraense de Bibliotecários
– Associação Profissional de Bibliotecários da Paraíba
– Associação Profissional de Bibliotecários de Pernambuco
– Associação de Bibliotecários do Estado de Piauí
– Rede de Bibliotecas e Centros de Informação em Arte no Estado do Rio de Janeiro
– Associação Profissional de Bibliotecários do Rio Grande do Norte
– Associação Rio-Grandense de Bibliotecários
– Associação Catarinense de Bibliotecários
– Associação Profissional dos Bibliotecários e Documentalistas de Sergipe
– Comissão Brasileira de Bibliotecas Prisionais
– Comissão Brasileira de Bibliotecas Escolares
– Comissão Brasileira de Direitos Autorais e Acesso Aberto
– Comissão Brasileira de Bibliotecas Universitárias
– Comissão Brasileira de Bibliotecas das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica
– Grupo de Trabalho em Bibliotecas Públicas
– Grupo de Trabalho Acessibilidade em Bibliotecas
– Grupo de Trabalho em Catalogação
– Grupo de Trabalho Bibliotecas pela Diversidade e Enfoque de Gênero
– Grupo de Trabalho de Bibliotecas Parlamentares
– Grupo de Trabalho Serviços de Bibliotecas para Pessoas em Vulnerabilidade
– Grupo de Trabalho Competência em Informação