Preciosidades guardadas na biblioteca do antigo colégio oferecem o prazer do contato direto com a cultura
“Visitantes vêm ao Caraça e visitam o museu. Quando por acaso chegam à biblioteca, olham e dizem: é só uma biblioteca. E vão caminhar”, constata a bibliotecária Vera Lúcia Garcia, que trabalha lá desde 1998. “Merecemos mais atenção. Quer saber um pouco da história daqui? Consulte a biblioteca. É assim que consigo a atenção dos visitantes”, conta ela.
Quem vai ao Santuário do Caraça, ao belo parque ecológico onde ele está instalado ou às pousadas na área do antigo colégio, mas ignora a biblioteca que lá funciona, não sabe o que está perdendo. A história desse patrimônio cultural de Minas Gerais daria um romance.
Intrigas e perseguições políticas em Portugal, que envolveram a suspeita de atentado contra o rei, trouxeram para o Brasil, em 1774, o português Carlos Mendonça Távora. Em Diamantina, ele ingressou na Ordem Terceira de São Francisco e passou a se chamar irmão Lourenço de Nossa Senhora. Ele comprou terras na região da Serra do Caraça, iniciando a construção de uma igreja e do hospício Nossa Senhora Mãe dos Homens.
No século 18, hospício significava hospedaria para abrigar penitentes que passavam por graves problemas, como dívidas, tentativa de suicídio ou situações de desespero. Ninguém podia prender ou retirar as pessoas de lá.
Ao morrer, em 1819, irmão Lourenço deixou em testamento a determinação de que Nossa Senhora Mãe dos Homens abrigasse uma escola para meninos. A missão foi cumprida pelos padres Leandro Rebelo e Antônio Ferreiro, que chegaram ao país em 1820. Em 1827, ela já funcionava como seminário menor: o aluno entrava aos 8 anos e saía aos 17 – recebia instrução correspondente aos atuais ensinos fundamental e médio. Se o garoto tivesse vocação religiosa, era encaminhado para o seminário maior, em Petropólis (RJ).
Devem-se ao padre Miguel Maria Sipolis, superior do colégio entre 1854 e 1867, os livros dos séculos 16 a 18 lá reunidos. Em 1968, um incêndio reduziu 50 mil volumes para os 30 mil atuais. “Não se trata de biblioteca só de livros religiosos, mas de acervo eclético com obras de literatura, botânica, filosofia, teologia e história”, informa Vera Lúcia Garcia. Esse perfil, observa ela, deve-se à necessidade de apoio bibliográfico a um currículo que chegava a 25 matérias. “Os padres não mediam esforços para comprar livros, visando construir o local que já foi chamado de suporte intelectual de Minas Gerais”, conta a bibliotecária do Caraça.
Os alunos tinham livre acesso apenas aos clássicos – obras de Virgílio, Horácio e Cícero, em latim. O padre bibliotecário selecionava o que os garotos poderiam ler. “Nem Dom Quixote, de Cervantes, era permitido. Esta biblioteca é prato cheio para autores de teses sobre colégios do século 19 e início do 20, sobre o comportamento dos alunos e o que era oferecido a eles. O acervo se tornou importante não só para o colégio, mas para Minas Gerais”, acrescenta Vera. Do século 18 ao início do 20, políticos, engenheiros e escritores – boa parte da elite brasileira – estudaram no Caraça. O colégio foi desativado em 1912. Em 1968, deixou de funcionar a escola apostólica.
A bibliotecária explica que a proposta não é ampliar o acervo, pois não há mais lugar para livros, mas mantê-los de forma adequada. “Faltam recursos e a manutenção não é simples, mas, graças à credibilidade do colégio, às famílias de pessoas que estudaram aqui e à Associação dos Ex-Alunos Lazaristas e Amigos do Caraça, temos conseguido apoio para os projetos”, observa. O programa de revitalização começou pela aquisição de estantes rolantes, instalação de desumidificadores e sensores de temperatura e umidade. A biblioteca mantém projetos dedicados ao incentivo à leitura e à educação ambiental nas escolas públicas da região.
Atrações Pequenas mostras das preciosidades da biblioteca do Caraça estão expostas na vitrine lacrada, bem na entrada do espaço. Pode-se ver a Historia naturale, de Plínio, o Velho (232–279), de 1489, um incunábulo (livros editados entre 1450 e 1500, época do nascimento da imprensa). Ou Imitação de Cristo, com cinco centímetros e editado em 1851, espécie de livro de bolso dos padres, com trechos da Bíblia para meditação. O menor volume da coleção é a Bíblia de 3,4cm por 2,7cm. O maior é Sertum palmarum brasilensiensium, de botânica: os dois volumes pesam cerca de 27kg.
Divertidos são os comentários manuscritos de dom Pedro II nas margens das páginas de O conselheiro Francisco José Furtado ou Biografia e estudo da história política contemporânea, de Tito Franco Almeida, de 1867. Um livro muito procurado é Della fisionomia dell’huomo, de Giovanni della Porta, editado em 1573 ou 1613 – com muitas ilustrações, esse estudo compara a fisionomia do ser humano à dos animais. Como os visitantes procuravam diretamente essa obra, criaram-se normas para acesso a ela.
O documento mais antigo é a autorização do rei português, em 1766, para que irmão Lourenço pudesse esmolar, possivelmente para viabilizar a construção do santuário na Serra do Caraça. Entre as obras raras modernas está a primeira edição de Os sertões, de Euclides da Cunha.
Outra preciosidade: Nova escola para aprender a ler, escrever e contar, de Manuel Andrade Figueiredo, editado em 1722. Com belos modelos de letras de ornamentação e de desenhos a bico de pena, a obra era muito usada por alunos do Caraça.
Caraça
Em Catas Altas, a 120 quilômetros de Belo Horizonte. Aberto diariamente, das 7h às 17h. O local conta com igreja, museu, biblioteca e pousadas. Fica dentro de um parque natural. Ingresso: R$ 7. Visitas à biblioteca devem ser agendadas pelo e-mail bibliotecadocaraça@yahoo.com.br ou (031) 3837-2698. Informações: www.santuariodocaraca.com.br.
Palavra de especialista
José Arnaldo Coelho
Professor de história da arte da Universidade Federal de Ouro Preto
Lugar especial
A biblioteca do Caraça é especial pelo lugar em que se encontra, pela qualidade do acervo, pelo carinho que as pessoas de lá têm com os livros e conosco, pesquisadores. Ressalte-se a importância da coleção de livros eclesiásticos, reunidos desde o fim do século 18. Apesar do incêndio, sobraram obras muito valiosas. Elas estão catalogadas e indexadas, o que é raro fora de instituições de ensino e pesquisa. No geral, tirando o Arquivo Público Mineiro, coleções de obras raras, livro antigo, não dá ibope.
É uma pena. O que nos livra da mediocridade é a leitura. Há outras bibliotecas interessantes em Minas: a de Belo Horizonte é muito bonita, atende bem as pessoas. E ninguém a consulta. Temos também a da Escola de Minas, em Ouro Preto, a Baptista Caetano de Almeida, em São João del-Rei, o Museu do Livro, em Mariana.
Fonte: Estado de Minas Cultura | Walter Sebastião