Estudo da Associação Internacional dos Editores, de 2012, apontou o Brasil como o nono maior mercado editorial do mundo. Segundo a última pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, realizada anualmente por encomenda do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel) e da Câmara Brasileira do Livro (CBL), em 2012 o setor editorial brasileiro faturou R$ 4,9 bilhões e vendeu 434,9 milhões de livros. Um dos gêneros preferidos dos leitores, porém, a biografia vive um longo capítulo de suspense com o debate em torno de direitos legais de biografados. Esta é possivelmente a razão da redução no número de exemplares produzidos no país – de 6,5 milhões, em 2011, para 4,1 milhões, em 2012, representando participação de 1,3% no mercado editorial.
Em resumo, publicar biografias tornou-se um investimento de risco, pois o biografado, seus herdeiros ou pessoas citadas no livro podem entrar na Justiça e pedir o embargo da obra, como ocorreu com os escritores Ruy Castro e Paulo Cesar de Araújo – que neste sábado, dia 7, estarão na 16ª Bienal do Livro, às 18h30, no Placar Literário, para debater com o deputado federal Alessandro Molon (PT-RJ), relator do Projeto de Lei 393/11, que põe fim à exigência de autorização para a publicação de biografias, sobre os limites entre a liberdade de expressão e o direito à privacidade e a expectativa em torno da aprovação do Projeto pela Câmara dos Deputados.
Tramitando desde 2011, o projeto, de autoria do deputado Newton Lima, propõe alterações no artigo 20 da Lei 10.406, para garantir “a divulgação de informações biográficas sobre pessoas de notoriedade pública, cuja trajetória pessoal tenha dimensão pública ou cuja vida esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade”. Hoje, o Código Civil brasileiro determina que, “salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da Justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”. Na prática, o projeto liberaria obras biográficas de autorização prévia dos personagens citados, de acordo com a Constituição brasileira, que diz, em seu artigo 5º, que é livre e independente de censura ou licença a manifestação intelectual, artística e científica.
– Mas, com tantas restrições jurídicas, as editoras brasileiras optam por não correr riscos, e seguram os projetos e as publicações. Acabam por adiar a publicação de obras ou evitar trechos que possam trazer problemas. Quando na leitura de um original, se percebe algo que pode vir a ser caso de litígio, muitos editores orientam o autor a suprimir o trecho do livro. Ao invés de cuidar apenas da qualidade literária da obra, o editor acaba por se ocupar com problemas jurídicos e exerce uma autocensura prejudicial ao setor – lamenta o editor Fernando Sá, coordenador da Editora PUC-Rio.
Autores censurados
Ruy Castro, autor da biografia de Garrincha, Estrela solitária, teve seu livro proibido de circular logo após o lançamento, em 1995, e enfrentou as filhas do jogador na Justiça. O escritor acredita que o Projeto de Lei em tramitação no Congresso pode tornar mais valorizado o trabalho dos biógrafos no Brasil, e que a aprovação da lei vai ajudar na liberação das biografias censuradas:
– Sou a favor de uma lei que, em caso de um biografado se sentir ofendido por um livro, que escreva ou mande escrever outro desmentindo, que entre com um processo e leve as calças do biógrafo, ou até que mande matar o biógrafo. Mas que deixe o livro seguir sua carreira em paz, como acontece em todos os países civilizados – argumenta o escritor.
O livro Roberto Carlos em detalhes, escrito por Paulo Cesar de Araújo, é um dos casos mais populares de biografia censurada. A polêmica em torno do livro foi tão grande que o caso se tornou símbolo contra a proibição de obras biográficas. O livro foi proibido de circular em 2007 e, em 2008, o então deputado Antonio Palocci (PT-SP) apresentou o primeiro Projeto de Lei propondo o abrandamento do artigo 20 do Código Civil (que acabou arquivado em 2010, sem nem entrar em votação, e depois retomado por Newton Lima, outro deputado petista). Como confirmam os deputados, o projeto foi motivado pelo caso de censura envolvendo o escritor Paulo Cesar e Roberto Carlos.
Paulo Cesar, professor do Departamento de Comunicação da PUC-Rio, lembra que em países democráticos, como França, Inglaterra e Estados Unidos, não há empecilhos para a publicação de biografias, e no Brasil deveria ser igual:
– A aprovação da lei e a volta do meu livro às livrarias representaria uma vitória. Luto pelo avanço da democratização social no Brasil. O país passou a ter menos tolerância em relação ao racismo e à omofobia, e avançou no acesso a informação. Mas no quesito biografia acredito que houve um retrocesso, e o Brasil precisa superar esse obstáculo, pois só assim vamos passar a ter o direito de exercer nossa liberdade de expressão em pleno estado democrático – afirma Paulo Cesar, que teve a ideia de escrever um livro sobre o cantor no início dos anos 90, quando ainda era estudante de jornalismo na universidade (leia aqui outra entrevista de Paulo Cesar de Araújo ao Portal).
Após o lançamento, Roberto Carlos, que havia sido procurado pelo autor ao longo de duas décadas, especialmente durante o processo de escrita do livro, decidiu processar a editora e o escritor. A editora Planeta fez um acordo com o cantor e lhe entregou os exemplares. Paulo Cesar questiona o acordo e pede na Justiça a liberação da obra. O biógrafo acredita que a grande repercussão ocorreu pelo fato de o cantor ser o artista mais popular do país, e pelo modo “violento” como Roberto Carlos conduziu o processo.
– A expectativa era de que Roberto Carlos gostasse do livro. Mas, para a surpresa de todos, ele pediu a minha prisão e a indenização diária de R$ 500 mil. Estamos acostumados a ver o Rei defendendo a ideia de paz e querendo “ter um milhão de amigos”, e essa atitude chocou o público.
O escritor também destaca que Roberto Carlos não ficou incomodado com quaisquer trechos do livro. O cantor simplesmente alega que não queria a existência de uma obra em que fosse mencionado e que não tivesse sua autorização.
Procurada, a assessoria do cantor disse que não estava autorizada a falar sobre o caso, e que Roberto Carlos não poderia se pronunciar, pois estava viajando.
Em seu primeiro livro, Eu não sou cachorro não: Música popular cafona e ditadura militar, Paulo Cesar analisou a música brega dos anos 70, e mergulhou fundo no tema censura.
– Posso dizer que, em termos de censura, conheço na prática e na teoria. No primeiro livro, analiso e revelo a censura na música brasileira; com o segundo livro, fui vítima da censura em pleno Estado democrático de direito. Mas acredito que o meu caso está contribuindo positivamente para a mudança da lei.
Eliana Yunes, professora do Departamento de Letras da PUC-Rio, acredita que um maior debate entre pesquisadores, editores e biografados pode facilitar a polêmica em torno das biografias:
– É muito grande o desgaste de uma pesquisa que não pode ser publicada. Impedir que se conheçam acontecimentos ou fatos de interesse público é censura explícita.
Segundo a professora, a proibição da venda de obras biográficas representa uma perda significativa para a literatura, a sociedade, autores, editores e o próprio biografado.
– Injustiças, inverdades e interpretações errôneas podem ser respondidas. Ninguém pode pretender ter uma vida sem dobras, pois sendo humanos somos sujeitos a limites emocionais ou intelectuais. O que se deve preservar é o direito de resposta ao relato, coisa que já acontece naturalmente, em que os próprios pesquisadores corrigem dados ou interpretações – observa Eliana, lembrando que a legislação brasileira prevê punições em casos de calúnia, infâmia, difamação, como ocorre em outros países democráticos, como os Estados Unidos, onde autores e editores não encontram impedimentos para a realização de biografias. Por isso, o país tem tradição nesse segmento literário.
O Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel) tem se mobilizado para conscientizar os parlamentares da importância da aprovação do projeto e criou a Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel). Em julho de 2012, a Anel entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal contra o artigo 20 Código Civil. A ação, que tem como relatora a ministra Cármen Lúcia, reforça o objetivo de retirar a obrigatoriedade de autorização do biografado ou de seus familiares como condição prévia para a publicação de obras biográficas.
– Esperamos que o Supremo Tribunal Federal, por meio de uma interpretação conforme a Constituição do artigo 20, afaste essa exigência esdrúxula, que configura uma espécie de censura privada. A construção da identidade e da memória coletiva é um dever e um direito de todos os cidadãos. A historiografia social não é propriedade das pessoas envolvidas em fatos públicos – defende Gustavo Binenbojm, advogado responsável pela ação.
Ele acredita ainda que a falta de regulamentação na Lei das Biografias facilita a divulgação de fatos ou versões que interessam apenas o biografado ou os seus familiares:
– No âmbito do mercado editorial, os efeitos da necessidade de consentimento prévio são nefastos. Cria-se um leilão em torno da autorização que envolve o próprio biografado ou inúmeros familiares, que chega a cifras milionárias e põe em risco a própria viabilidade da edição dos livros – afirma o advogado.
Casos de biografias censuradas por parentes de pessoas já mortas são comuns no setor editorial. As filhas do jogador Garrincha e do escritor Guimarães Rosa, assim como as sobrinhas de Noel Rosa, entraram na Justiça contra a circulação de livros, alegando invasão de privacidade e falta de autorização.
As ações tiveram fundamento no artigo 20 do Código Civil. Além do biografado e de seus parentes, qualquer pessoa citada no livro também tem o direito de pedir o embargo da obra.
O livro Anderson Spider Silva – O relato de um campeão nos ringues da vida, do jornalista Eduardo Ohata, publicado pela Editora Primeira Pessoa, foi proibido de circular. A biografia autorizada pelo próprio lutador de UFC foi recolhida das livrarias, pois o ex-treinador de Anderson Silva, dono de uma academia de lutas marciais em Curitiba, foi citado no livro e processou a obra.
O jornalista Edmundo Leite, autor de uma biografia sobre Raul Seixas, que nem chegou a ser impressa, recebeu um comunicado de Kika Seixas, ex-mulher do músico, dizendo que não queria seu nome mencionado na obra. Para Kika, muitas biografias já foram produzidas por fãs, e o biografado não pode se defender dos fatos relatados:
– Já foram lançadas mais de 15 biografias de Raul Seixas ao longo de 20 anos. A maioria foi feita por fãs ardorosos ou curiosos, que resolveram escrever sobre seu ídolo, criando histórias e descrevendo situações infundadas, fantasiosas e constrangedoras, sem nenhuma veracidade. Por muitas vezes isso nos criou, a mim e minha filha, revolta e tristeza, pois o biografado não poderia se defender, e nós não podíamos impedir os lançamentos por se tratar de liberdade de expressão. Por isso, proibi um jornalista que escrevia a 16ª biografia sobre Raul que mencionasse meu nome ao longo da obra.
O jornalista Otávio Cabral teve mais sorte ao escrever Dirceu: A biografia, publicada pela Record. O livro contém informações e documentos exclusivos sobre a trajetória política do ex-ministro da Casa Civil de Luiz Inácio Lula da Silva, condenado no processo do mensalão. O livro, além de contar a tensa relação entre José Dirceu e Lula, descreve arroubos de grandeza, viagens em jatinhos particulares e noitadas com mulheres. A obra aborda também a infância do petista em Minas Gerais, o período em que viveu em Cuba e, depois, clandestinamente, no Brasil. O ex-líder estudantil e ex-militante de esquerda perseguido pela ditadura militar, que se tornou o segundo homem mais importante da República, foi sentenciado a dez anos de prisão e ficará inelegível até 2031. O livro termina com a condenação de Dirceu no julgamento do mensalão. A biografia não autorizada seria publicada pela editora Leya, que desistiu do projeto alegando que poderia enfrentar questões jurídicas.
Filmes também precisam ser previamente autorizados
Assim como biografias, filmes que retratam a vida de pessoas públicas também podem enfrentar problemas na Justiça. No ano passado, a Rede Globo perdeu um processo movido pela família de Chico Mendes e teve que indenizá-la com 0,5% dos lucros da minissérie Amazônia – De Galvez a Chico Mendes, exibida em 2007.
A cantora Cássia Eller, morta em 2001, vai ter a vida contada nas telas de cinema pelo cineasta Paulo Henrique Fontenelle. Os 10 anos de carreira e o legado deixado por Cássia no rock brasileiro contribuiu para o interesse do cineasta em produzir o filme. O documentário, sem data certa de lançamento, pretende chegar aos cinemas ainda dentro das comemorações do cinquentenário da cantora, que hoje estaria com 51 anos. O longa está em fase de produção e já foi feita uma pesquisa de imagens, em que estão registrados os momentos da cantora com a família e com a banda.
Segundo Francisco Eller, o Chicão, filho da cantora, o filme está sendo produzido sem problemas e as filmagens já começaram. Chicão autorizou o documentário, pois sabe que, assim como ele, milhares de fãs gostariam de ver um filme sobre Cássia.
– Eu gostaria de assistir a tudo sobre os Beatles, por exemplo. Mas a questão vai muito além do nosso desejo em conhecer um artista. Tem que haver um respeito com a imagem da pessoa, mesmo que ela seja pública. É por isso que eu e minha família zelamos pelo trabalho da minha mãe. Acho que não se deve fazer nada sem autorização, por maior que seja o personagem – afirma Francisco.
O escritor Paulo Cesar de Araújo discorda da exigência de autorização:
– O artista opta por sair do anonimato e, quando está na mídia, não pode querer controlar todas as informações sobre ele. Mas isso não significa que alguém possa ser caluniado. A própria legislação garante que, se o biógrafo escrever alguma mentira, vai ser processado. O que não pode ser feito é proibir a circulação de um livro.
A presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Sônia Machado Jardim, acredita que a aprovação do Projeto de Lei na CCJ da Câmara foi uma grande conquista, e afirma que o sindicato vai manter contato com os parlamentares para tentar derrubar o recurso e manter a tramitação original, diretamente para o Senado. Sônia acredita que a história de um país é feita pelas personalidades que presenciam os grandes momentos, e que depois de anos de luta pelo restabelecimento da democracia e da liberdade de expressão não se pode permitir que a censura volte a reger obras artísticas:
– Quando há restrição de publicação das histórias de pessoas públicas, a preservação do conhecimento se perde. É uma questão maior do que angariar divisas financeiras e buscar o lucro. Trata-se de garantir para as futuras gerações o conhecimento da história do Brasil – afirma.
Fonte: PUC Rio