Tudo o que está na “nuvem”, sem a dinâmica da assimilação, não passa de dados à procura de uma mente criativa que faça novas conexões
Não é mais simplesmente uma biblioteca nem sequer dados armazenados em um computador. Essa tal de “nuvem”, a mais nova entidade da cultura, o mais novo lugar do saber, conteria, por definição, tudo o que já foi posto em palavras. Será?
Mesmo que eu não tenha acesso à completude do conceito de “nuvem”, ou “cloud”, em inglês, como é mais conhecido, talvez porque nem tenha sido completamente esgotado, posso concluir que se associa à dinâmica de um pecado mortal: o da ganância.
Tudo deve ter começado nas folhas de uma planta (papiro), na verticalidade e porosidade das pedras e do barro. Tudo para guardar, para não perder, não esquecer. A acumulação tem como função dar conta do nosso medo de perder. Esse temor praticamente domina a nossa relação com o mundo. Quero guardar, mesmo não sabendo por quê. Quero ter à disposição todo o necessário para enfrentar o imprevisível. Não quero sentir falta.
Uma vez me contaram a história de uma senhora que nunca jogava nada fora, muito menos o que não era perecível. Tanto acumulou que acabou morando num dos carros que também mantinha em seu quintal. Na casa, não cabia mais nada. Os vizinhos acabaram intervindo, temendo uma possível peste (rato, barata, aranha). Acumular, de fato, em certos casos, pode se tornar uma questão de saúde pública.
No campo do pensamento, temos as enormes bibliotecas, cujo orgulho é conter o máximo de ideias possíveis, organizadas de tal forma que sejam acessíveis. Para tanto, existe uma ciência, a técnica de arquivar.
Evitar o desgaste, não deixar apodrecer, lutar contra a decadência das estruturas da natureza ou mesmo das imagens parece ser uma das funções do que chamamos de “nossa sociedade”. Essa função faz história, que é a matriz do homem. Enquanto sociedade, somos a resultante da interação dinâmica de todo o saber que guardamos.
Todas as culturas guardam e transmitem a sua sabedoria. Nós, no Ocidente, fomos além: chegamos à “nuvem”. O saber guardado, o saber que não se reproduz, que não contamina nem é contaminado, em caso de, em algum dia, ser útil.
Em qualquer biblioteca particular, podemos encontrar mais de “não lido” do que de “lido”. Para quê? Para termos à disposição informação de que eventualmente, um dia, porventura, podemos precisar. Não estou falando de biblioteca enfeite –falo também dos livros que são instrumentos de ganha-pão. No papiro, na pedra, na biblioteca, na “nuvem”…
Nisso tudo está… O que mesmo? Será o saber? Será a cultura? É um rito de sobrevivência, com certeza. Educação é dominar esse saber todo ou ser informado tão somente de que ele existe? Não sei, não… Tenho certeza de que educação tem a ver com ter acesso, conhecer os meandros que levam ao saber.
Acumular, arquivar é diferente de assimilar. Tudo o que está na “nuvem”, sem a dinâmica da aquisição e da assimilação, não passa de informações, dados à procura de uma mente criativa que os coloque em novas conexões. Cumpre à sabedoria integrar-se a uma máquina que a transforme. A mente humana tem esse poder fantástico de transformar arquivo em cultura.
Fonte: Anna Veronica Mautner | Folha UOL