Sim, é um baita desafio formar bons leitores nestes dias de games e afins à mão cheia, para todos os gostos e bolsos. A atenção é dividida constantemente com qualquer distração, acessada com um simples touch. Basta o toque de um único dedo e um universo de entretenimento gratuito está à disposição de qualquer internauta. E não é só: muitos, se não todos, têm suas aventuras narradas em… livros! Impressos ou digitais. Então, ao que parece, ao contrário do que muitos preconizavam e preconizam, o livro continua sendo, sim, uma tecnologia de futuro!
Nos dias em que vivemos, a alfabetização publicitária muitas vezes precede ou é vizinha da alfabetização em si, da entrada no mundo da cultura escrita. Guiados por palavras e textos funcionários, pobres e ricos – muito mais os pobres do que os ricos -, ficam órfãos de experiências profundas e significativas.
Para ampliar o pequeno panorama em que vivemos e nos projetar, seja para a intensidade dos ambientes e das relações que estão no chão em que a gente pisa, seja para alargar horizontes para muito além de nós e promover abertura para abraçar a diversidade e causas de valores humanitários, é preciso, como diz o Professor Luiz Percival Leme Britto, “ler para além do óbvio”.
Então, vejamos, um livro de um youtuber sobre uma aventura de videogame é apenas e tão somente uma outra forma – escrita – de enveredar pelo mesmo universo: o jogo, que pode ter seu mérito até como recurso educativo para, por exemplo, aprender a planejar.
Mas é isto o que é, um jogo inserido em contexto já sabido; nenhuma trama, tensão ou personagens a desvendar, criar, imaginar, reconhecer, animar. Nada que arrepie a pele, provoque um choque, assombre, encante, seja desconhecido. Nenhum personagem com quem se solidarizar, estranhar, amar, odiar, temer para além do cenário já sabido.
Nada que faça mover de forma diferente um único músculo de um neurônio, se ele tivesse um. É estrada já percorrida, já sabida. Mais do mesmo! Ah! E não se trata aqui de censurar, negar, impedir, bloquear, impossibilitar o acesso a estes livros – nem queimar em praça pública, obviamente –, mas saber e estar atento para empreender estratégias que promovam às crianças, jovens e adultos uma trajetória leitora com leituras formativas: “leituras para além do óbvio”.
São livros que são pedidos e vendidos como água. Mas não são boa literatura. Da literatura, colhemos o espanto e nos alimentamos de revelação. Em “Lugar Nenhum”, de Neil Gaiman, há um vilão tão vilão, tão cruel, tão insensível, que entre seus prazeres mais requintados de sadismo – que compreende uma longuíssima lista de horrores levados a cabo ao longo de séculos – está saciar sua fome de beleza do mundo comendo, literalmente, uma estatueta de porcelana chinesa raríssima, criada há séculos por um renomado e incomparável artesão.
Não basta ao Sr Croup realizar as maldades sabidas ou surpreendentes aos seres humanos que, caídos em desgraça segundo algum bom pagador por vinganças, definham em suas mãos; ele se alimenta do que pode trazer beleza e humanidade ao mundo!
É longa e diversificada a prateleira do “mais do mesmo”. Adaptações ruins de clássicos da literatura, dos contos hindus e da mitologia grega aos contemporâneos, tem de tudo um muito. É preciso um bom trabalho de arqueologia para identificar e propor leituras de referência.
“Formar leitores é muito mais do que transmitir uma técnica: é algo que tem a ver com o princípio de prazer, com as liberdades da imaginação, com a magia de ver convertidos em relatos bem narrados e em reflexões nítidas muitas coisas que vagamente adivinhávamos ou intuíamos, com a alegria de sentir que ingressam em nossa vida personagens incomparáveis, histórias memoráveis e mundos surpreendentes”, escreve Willian Ospina, jornalista e escritor colombiano.
Bom, assim como não é possível guiar alguém por trilhas que são pelo guia desconhecidas, levar a ler e formar bons leitores é obra que só pode ser bem empreendida por leitores experientes: não é possível dar aquilo que não se tem. Adultos, pais, educadores: ler é preciso!
Artigo de Christine Castilho Fontelles
Fonte: Chega de Trabalho Infantil