Eles são obstinados no intuito de formar leitores, numa prática que envolve, sobretudo, a paixão
A escolha da data homenageia Castro Alves (1847– 1871), lembrando o dia em que o poeta baiano nasceu. Ainda que pouco divulgado, o 14 de março é o Dia do Livreiro, data em que um texto de outro autor, Monteiro Lobato, costuma ser lembrado, por conta de trechos como: “O livreiro vende o artigo mais difícil de vender-se. Qualquer outro lhe daria maiores lucros; ele o sabe e heroicamente permanece livreiro”. Lobato foi além: para ele, suprimido o livreiro, estaria morto o livro. E diante desse fato, segue, retrocederíamos “à Idade da Pedra”.
Verdadeiros heróis da resistência, eles seguem firmes no complicado cenário das livrarias de rua da capital mineira, que vem sofrendo alguns baques nos últimos anos. A começar do fechamento de pontos icônicos, como a Mineiriana, Livraria da Travessa, Café Book, Floriano, Status e, mais recentemente, a Van Damme – pontuando-se que o encerrar de atividades, em alguns dos casos citados, não se deu em função da crise econômica, mas por outras questões.
Não bastasse, a venda online, com descontos e por vezes frete grátis, segue ameaçando as pequenas livrarias. Até grandes redes, como a Fnac, vêm enfrentando dificuldades. A entrada da gigante Amazon foi outra pedra no caminho.
Mesmo com os percalços, os livreiros seguem intrépidos no objetivo de formar leitores, numa prática que envolve, sobretudo, a paixão. Caso de Álvaro Gentil. Ao migrar de Ituiutaba para BH na expectativa de ser chamado para um concurso público, ele foi trabalhar na saudosa livraria Van Damme, no centro, fechada recentemente. Já no primeiro dia, se deu conta: era o que queria da vida. “Fui cair justamente naquele lugar maravilhoso, de um acervo incrível. Seu Van Damme (o holandês Johan Van Damme), em plena forma, me passava muito conhecimento”. Meses depois, já atuando como livreiro, Álvaro abriu o próprio espaço, e, na sequência, uma editora. Hoje, toca uma segunda casa editorial, a Ramalhete, mas segue atuando como livreiro online.
Explica-se: muitas pessoas recorrem a ele no Facebook, na página Livraria do Álvaro (que, vale dizer, é só virtual), pedindo dicas. A confiança, ele credita ao fato de, como outros livreiros da cidade, estar envolvido e apaixonado com literatura até a medula, e ao fato de exercer a profissão com prazer. “Se gostava de um livro, sempre recomendava. Alguns títulos, acredito ter vendido mais de 500 exemplares”. Caso de “Ascese”, do grego Nikos Kazantzákis.
A paixão à qual Álvaro se refere é compartilhada por Simone Pessoa, Alencar Perdigão e Welbert Belfort, alguns dentre outros vários livreiros em atividade na cidade. O time, aliás, ganhou reforço ano passado, com a inauguração da Bantu (leia mais na página 4), da jornalista, livreira e pesquisadora Etiene Martins.
Para Simone Pessoa, trata-se de uma paixão que não se mede. No seu caso, o apreço a livros era tão atávico (“desde que aprendi a ler, na verdade”) que ela optou por cursar biblioteconomia – mas na sala de aula se deu conta de que as livrarias seriam seu futuro, “pela dinâmica, pelo contato com as pessoas”. Só na livraria Ouvidor, está há 17 anos, e seu entusiasmo se manifesta na fala incessante e na gesticulação ao mostrar os lançamentos mais recentes e sugerir títulos que já passaram pelo seu crivo.
Leitores vorazes
Sim, ler muito, assiduamente, é outra característica inerente ao livreiro. Simone costuma dar atenção especial aos contemporâneos, como Gonçalo M. Tavares, Ian McEwan e Michel Houellebecq, ou aos brasileiros Ana Martins Marques e Daniel Galera. Dos ditos “fenômenos”, avaliza a italiana Elena Ferrante, mas não especificamente a célebre tetralogia “Série Napolitana”, e sim “Os Dias do Abandono” e “A Filha Perdida”. “Que escrita envolvente! Nunca vi, na literatura, algo tão impactante quanto o que ela fala da maternidade”. Vale lembrar que Ferrante é, na verdade, um pseudônimo. A identidade da autora é guardada a sete chaves – especula-se que seja a tradutora Anita Raja.
Junto ao público
Se amar os livros é premissa, tão importante quanto, para um livreiro, é gostar do contato com o público. Quando ainda era estudante de Letras, Alencar Perdigão aventava trabalhar numa loja de discos ou numa livraria. “Olha o meu romantismo”, diverte-se ele, hoje. Quis o destino que a segunda opção fosse a selecionada. Após labutar em livrarias como a Ouvidor e a extinta (em BH) LetraViva, Alencar passava pela Savassi quando, na rua Fernandes Tourinho, viu uma placa anunciando um imóvel. Não titubeou e veio a Quixote, hoje um dos pontos que movimentam a região, principalmente nas manhãs de sábado, quando várias pessoas cumprem um périplo nos lançamentos de livros que acontecem também na Ouvidor e na Scriptum.
A efervescência resultou, tempos atrás, na Associação de Livrarias de Rua, que, além das três citadas, abarcava as extintas Mineiriana e Floriano. Sim, apesar de “concorrentes” (embora cada uma com suas especificidades), a causa era a mesma: manter viva a chama das livrarias de rua. “O nosso concorrente, na verdade, era a internet”, lembra Alencar, referindo-se à venda online por grandes redes. Fantasma que, assim como a ascensão do livro digital, não assola mais Simone. “As pessoas gostam do ritual de ir às livrarias, é comum pais trazerem filhos para incentivar o hábito da leitura. Acaba virando um passeio”.
A teoria tem a anuência de Alencar: “As livrarias de rua acabam sendo um ponto de encontro de pessoas que sentem prazer em estar entre livros para conversar sobre livros – e por vezes, saboreando um café”.
Em prol de manter o livro vivo
O fato de estarmos vivendo uma crise econômica de grandes proporções aliado ao de a Amazon ter passado a operar no Brasil, claro, impactou a venda de livros em todo o país – inclusive nas chamadas livrarias de shopping. Recentemente, a rede francesa Fnac – que tem uma filial na capital mineira, no BH Shopping – declarou que está à procura de uma parceria para poder permanecer em terras brasileiras.
Para fazer frente às dificuldades de manter uma livraria de rua nos dias atuais, Welbert Belfort – livreiro há 22 anos, 20 desses à frente da livraria e editora Scriptum – investe em outros braços, como a venda para fora de Minas Gerais, via Facebook – ele chegou a tentar uma parceria para venda online em site, mas a empresa à qual se associou acabou não se revelando uma boa opção.
“Sou de rua, mas tento conjugar a venda de livros aqui, na livraria, a outras iniciativas e ações. Temos uma clientela grande fora de BH, interessada, por exemplo, em títulos de áreas como a psicanálise”, explica. A poesia foi outro nicho no qual Betinho (como é conhecido) investiu pesado, por meio de nomes como Ana Martins Marques e Simone de Andrade Neves. Sem nunca ter tido patrocínio, ele também levou à sua loja física nomes basilares da poesia brasileira, como Chacal. Não bastasse, chancelou, por meio da editora, a estreia de nomes como Jacques Fux e Carlos de Brito e Mello, hoje talentos reconhecidos.
Bantu
A dedicação a um segmento específico motivou a jornalista Etiene Martins a criar a Bantu, talvez a mais recente livraria de rua da capital mineira (na avenida dos Andradas, próxima à praça da Estação). A iniciativa traz uma história interessante em seu bojo. “Na verdade, trabalho com livros desde 2014, mas antes como uma espécie de ‘livraria itinerante’. Se havia um congresso em que a questão do negro na sociedade estava em foco no Rio de Janeiro, por exemplo, colocava os livros (de temática afim) numa caixa e ia. Mas comecei a perceber a demanda por esses títulos fora desses eventos”.
Sem ter como atender a essas demandas específicas, e diante da decorrente decepção do interessado, veio a ideia de abrir a livraria, o que se concretizou há três meses. Mesmo sendo um tempo relativamente curto, Etiene constata uma procura expressiva, o que credita justamente à diferenciação do produto no qual apostou suas fichas. “Poucas livrarias se interessam pela temática da questão racial, na maioria, você encontra poucos títulos disponíveis sobre o assunto”.
Ali, o atendimento também é a cereja do bolo. “Quem recebe sou eu, o cliente encontra tempo para um café, conversar, falar de suas expectativas”, diz ela, que eventualmente liga para um e outro avisando sobre a chegada de algum título que aborde um assunto sobre o qual ele esteja pesquisando. Em tempo: Etiene é tão apaixonada por literatura que tem um canal no YouTube – desvinculado da livraria.
Inspiração
Filmes como “Nunca Te Vi, Sempre Te Amei” retratam a profissão do livreiro, que também aparece em livros, de Machado de Assis ao recente “A Caderneta Vermelha” (Antoine Laurain). Já o charme das livrarias de rua permeou filmes como “Um Lugar Chamado Notting Hill” ou “Mensagem Para Você”. O lado mais cru do métier inspirou Pedro Lacerda no documentário “Profissão Livreiro”.
Uma rua literária
A professora universitária Glória Gomide refere-se com carinho à rua Fernandes Tourinho, onde estão três das livrarias citadas nesta matéria – e onde, aliás, ela nasceu, e sua mãe mora até hoje. “Ah, se essa rua fosse nossa, entraríamos nas páginas, nas entrelinhas, rabiscaríamos as margens… Veríamos um mar mineiro – ou mundial – de letrinhas. Logo, estaria na rua das palavras”, diz, carinhosamente.
A aposentada Mila Durães endossa: “Sei o quanto é pesado mantê-las (as livrarias de rua), então, para mim, o que eles, livreiros, fazem é uma resistência, junto a pessoas que procuram não só informação – ainda mais em tempos líquidos, como falava (Zygmunt) Bauman – mas, acima de tudo, conhecimento”.
E é por pessoas como Glória e Mila – ou o jovem João Antônio Cunha – que as livrarias da rua acalentam projetos – um, inclusive, deve estrear em setembro: uma espécie de primavera literária, fechando, para veículos, o trecho entre Cristóvão Colombo e Getúlio Vargas, onde estão a Scriptum, Quixote e Ouvidor Savassi. “Mas nada de espetinho e food trucks. O livro vai ser o sujeito da festa”, avisa, bem-humorado, Alencar, da Quixote. Outra ideia seria fechar o cinturão dos livros permanentemente; ou aos sábados pela manhã – ou, ainda, um sábado ao mês. Um dos entusiastas do corredor literário é o gestor cultural Afonso Borges, que, aliás, vem fazendo um abaixo-assinado com esse fim. Cumpre dizer que em Londres, ruas de perfil literário como a Charing Cross atraem hordas de turistas, o que se repete em outros centros. “Em Paris, existe a preocupação de cada bairro preservar a sua livraria”, diz Alencar.
Números recentes não são animadores
Os números parecem conspirar contra o amor pelos livros. Em 2016, a comercialização deles no país recuou 8,9%. Não bastasse, 4.000 municípios brasileiros sequer têm livraria. Grandes redes, como a Cultura, demitiram funcionários e registraram queda de vendas na ordem de 17% nos últimos dois anos, segundo o jornal “O Estado de S. Paulo”.
Sobre o mercado, Betinho, da Scriptum, considera a venda de livros, no Brasil, uma terra sem lei. Entende que não há como os pequenos concorrerem com o preço oferecido por grandes redes, como a Amazon. Não por outro motivo, teme que muitos universitários hoje se formem sem passar perto de uma livraria. “Ou, o que é pior, de uma biblioteca”.
Certamente, não será o caso de João Antônio Cunha, 15, hoje estudante secundarista. Filho do saudoso jornalista mineiro Alécio Cunha, notório aficionado pelas palavras, ele cresceu frequentando livrarias – hoje, não deixa de ir às da Savassi ou mesmo ao centro, neste caso, à cata de quadrinhos, uma de suas paixões. “Gosto de ver o exemplar antes de comprar. De manusear, folhear”, diz ele.
A formação é um pilar também defendido pela presidente da Câmara Mineira do Livro, Rosana Mont’Alverne. “É na boa literatura que vamos encontrar referências que inspirem, permitam reflexões, desenvolvam o espírito crítico e nos reconectem a valores sólidos que refinem o olhar para o outro e para o mundo”.
Instada a falar sobre o papel dos livreiros, Rosana recorre a Carlos Drummond de Andrade. “Ele dizia que livrarias e sebos são o território livre do espírito, contra o qual não prevalecerá nenhuma forma de opressão. Se isso é verdade, cresce em importância o ofício do livreiro, aquele bom livreiro, que conhece os livros e autores que indica, que conhece o leitor, que conhece as pontes indestrutíveis que ajuda a construir no seu dia a dia”.
Fonte: O Tempo | Patrícia Cassese