Continuando com a série de entrevistas que não foram publicadas na íntegra na última revista CRB-6 Informa, do Conselho Regional de Biblioteconomia 6ª Região, selecionamos uma conversa com Cristian Santos. Ele as graduações que possui, estão a formação em Biblioteconomia, Letras e Filosofia, além de ser pós-doutor pela Fundação Casa de Rui Barbosa. Atualmente, Cristian atua como bibliotecário na Câmara dos Deputados. Confira a entrevista completa abaixo.
Cristian Santos é reconhecido também por suas lutas sociais (Foto: Carolina Oliveira)
Como você vê o mercado para o profissional de Biblioteconomia? O que mudou nos últimos anos?
Penso que a Biblioteconomia brasileira vive um momento favorável. A Lei 12.244, de 2010, determina que todos os estabelecimentos de ensino públicos e privados do país tenham uma biblioteca. O prazo-limite para que isso ocorra é maio de 2020 e exigirá a criação de, pelo menos, 180 mil vagas para bibliotecários em todas as regiões do Brasil. Como somos apenas 35 mil bibliotecários, é necessário que se forme um grande número de profissionais. Não podemos ignorar que a Biblioteconomia é, em regra, uma das graduações menos procuradas em todas as universidades federais e estaduais, e as notas de corte são baixas. Nossa profissão não atrai o brasileiro rico e de classe média, em geral mais intelectualmente preparado. Creio que isso esteja associado ao fato de nossas bibliotecas não oferecerem um ambiente convidativo, com desafios para essa geração que está crescendo. Por isso, o maior desafio a ser enfrentado neste momento é garantir um ensino de qualidade a esses novos profissionais e, quem sabe, firmar uma imagem atraente da Biblioteconomia. Além disso, os futuros bibliotecários contratados em função da lei atuarão em escolas, e, como bem ressaltou Jesse Shera, um importante cientista da informação do século XX, “a biblioteca infantil é a mais importante de todas. Trata-se de um serviço vital tanto para o futuro da Biblioteconomia como para o bem-estar social. Isso porque a criança de hoje é o eleitor de amanhã.”
Existem boas oportunidades e salários atrativos?
Há excelentes possibilidades de trabalho, tanto na esfera pública quanto na privada. Embora a maioria continue exercendo a profissão em bibliotecas, é possível atuar em editoras, centros de cultura, empresas de comunicação, provedores de internet, ONGs, clubes e associações.
Quanto à remuneração, observamos uma enorme disparidade. Um bibliotecário do Legislativo Federal ganha, em início de carreira, cerca de R$ 18 mil reais. No entanto, a Prefeitura de Passa Quatro (MG), por exemplo, já lançou um edital para a contratação de um bacharel em Biblioteconomia com o salário estabelecido em R$ 1.228,09.
Você viaja o mundo ministrando palestras. Comente sobre o mercado e as oportunidades dentro e fora do país.
Um bibliotecário em países desenvolvidos tende a ser respeitado. Ele oferece à sociedade moderna, forjada no princípio da diversidade, produtos e serviços de qualidade e recebe em troca um bom salário, a estima coletiva e um orçamento adequado para manter a sua biblioteca.
Em 2010, fui a Oslo, capital da Noruega, para participar do Congresso da International Federation of Library Associations and Institutions (IFLA), principal organismo global que representa os interesses da biblioteca, seus profissionais, serviços da informação e usuários. Fiquei impressionado com a postura do rei Harold V que, não satisfeito em produzir um vídeo saudando, efusivamente, os participantes, convidou os bibliotecários para tomarem uma taça de vinho no jardim de seu palácio. Além disso, descobri mais tarde que a Noruega era, pelo segundo ano consecutivo, a primeira colocada no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), e que defende, vigorosamente, a biblioteca enquanto espaço de formação continuada
Em agosto passado, celebramos no Brasil as bodas de ouro da regulamentação da profissão. Na ocasião, muitos deputados e senadores enviaram mensagens laudatórias à categoria. Observei, entretanto, que uma série de proposições legislativas ou decisões administrativas de relevância para classe, e que dependem dessas mesmas autoridades, acabam não avançando. Penso que a principal razão dessa letargia institucional é a ignorância dos gestores públicos e ocupantes de cargos eletivos a respeito do impacto que a biblioteca pode ter junto à sociedade brasileira. Estamos lidando com biblioclastas inconscientes.
Você passou em vários concursos públicos. Quais foram?
Aos 18 anos, com o primeiro salário que recebi do estágio em Biblioteconomia, paguei um cursinho preparatório e fui aprovado em um concurso para o cargo de técnico Judiciário do Tribunal de Justiça. Trabalhei no balcão do fórum, atendendo os advogados e as partes. Dois anos depois, já formado, fui classificado em 1° lugar no concurso de bibliotecário do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Após 10 anos de devotada dedicação em diversas áreas – como os setores de referência, análise de legislação e processamento técnico –, deixei o STJ, não sem antes ter recebido um elogio formal por parte da Secretária de Documentação, ressaltando a competência, dedicação e esforço por mim demonstrados na execução das atividades, o que me deixou muito agradecido. Atualmente sou bibliotecário na Câmara dos Deputados.
Por que você optou pela Biblioteconomia?
Embora não defenda que o amor pela leitura seja razão suficiente para alguém desejar ser bibliotecário, posso assegurar que foi o afeto pelo livro que me conduziu, gradualmente, à biblioteca, e, posteriormente, ao Bacharelado em Biblioteconomia. Da época de criança, me recordo de quatro acontecimentos marcantes: a primeira visita a uma biblioteca; o primeiro livro ganho de presente; a competição intelectual entre alguns colegas da escola para ver quem mais lia; e meu deleite em consultar verbetes nas enciclopédias coloridas.
Devia ter uns seis anos quando minha irmã mais velha leu para mim a narrativa da Arca de Noé, na Biblioteca Setorial Érico Veríssimo. Aquele espaço me parecia tão mágico. Fiz um escândalo quando ela, impacientemente, se recusou a reler, pela quarta vez, o mito do dilúvio.
Algum tempo depois, em meu aniversário, ganhei do Sr. Barata, um velhinho português que morava ao lado de minha casa, O Cesto de Juncos. Era maravilhoso saber que aquele livro era, exclusivamente, meu. Foi o meu primeiro bem, de fato e de direito. Entronizei a obra numa caixa de sapatos com tampa e a levava comigo para a escola. Depois dessas duas experiências, tornei-me um leitor assíduo. Era um aficionado pelos contos dos irmãos Grimm.
Já pré-adolescente, disputava com alguns meninos da escola quem era capaz de ler o maior número de livros em menor tempo. Era um confronto e tanto. Movido pela curiosidade intelectual e vaidade, minha mãe cedia parte do dinheiro obtido pela venda de cocadas para eu comprar títulos da Série Vagalume. O Escaravelho do Diabo, relido dezenas de vezes, me excitava. Até encenei no teatro da escola o livro Éramos Seis.
Desde a leitura de a Arca de Noé, até os 19 anos, quando fui aprovado no concurso para o Tribunal de Justiça, minha vida gravitou em torno da Biblioteca Érico Veríssimo. Embora sem bibliotecário e com um acervo ruim, aquele espaço gerava em mim uma sensação de segurança e de pertencimento. A minha pobreza não estava em questão. Eu era muito querido pelas professoras que ali atuavam e me familiarizei, rapidamente, com a ordenação dos livros nas estantes, mistério intransponível para os meus colegas de escola. O silêncio tornava o lugar mais respeitoso, o que me levava a perdoar o tom raivoso das professoras dirigido aos usuários barulhentos. Eu adorava o cheiro de limpeza, o piso frio de pedra ardósia e o jardim de inverno.
Consumia as tardes consultando os verbetes da Barsa e da Larousse; quando não encontrava o termo desejado, matutava sinônimos e, num contínuo “senta e levanta”, lá ia eu fuçar outro volume, com uma ansiedade inesgotável de aprender. Eu não sabia que, anos mais tarde, estaria exercendo essa atividade com maior precisão, como bibliotecário de referência.
É um caminho que qualquer pessoa pode escolher ou é preciso ter um perfil específico para optar por concurso público?
É uma bobagem acreditar que o serviço público é para gente inteligente ou qualquer coisa que o valha. Concurso é como bolo de caixa: basta misturar os ingredientes na ordem estabelecida e eis um suculento gâteau au chocolat!
Entretanto, creio que valoramos demais a porta e ignoramos os perigos do redil. Explico-me: noto que alguns colegas dedicam tempo e dinheiro visando um concurso público, motivados pela estabilidade e por melhores salários. Ao serem aprovados, caem num marasmo doentio, restringindo sua atuação profissional a atividades técnicas, e reduzindo suas leituras às novas edições da Classificação Decimal Universal (CDU). Isso me soa desolador.
Quais são os desafios que a profissão oferece hoje?
Penso que o principal desafio da profissão é a valorização das técnicas, submetendo-as às pessoas, em sua diversidade que lhes é própria. Veja que complicado: ao mesmo tempo que apregoamos a importância da profissão para o desenvolvimento do país, nos revelamos incapazes de dialogarmos com as pessoas. Sofro ao relembrar que 76% dos brasileiros não frequentam nenhuma biblioteca, apesar de 67% deles não ignorarem a existência de pelo menos uma delas. Como um bibliotecário em sã consciência pode dormir tranquilo ao ser informado que 33% declararam, convictamente, que jamais frequentariam uma biblioteca? Estamos lidando com dados relativamente recentes, levantados pela Pesquisa Retrato da Leitura no Brasil (2011), em sua 3ª edição.
Tenho a impressão de que nós, bibliotecários brasileiros, sofremos de certa esquizofrenia: pintamos em tom rosiclair um cenário infernal. O bom nisso tudo é que a doença tem cura. Precisamos começar a admitir que nossas bibliotecas são apavorantes.
Por que cursar Biblioteconomia?
Para alguém que estivesse em namoro com a nossa área, eu responderia: “fazendo Biblioteconomia, você reduzirá, drasticamente, o risco de ficar desempregado, e abraçará uma profissão que, mesmo sendo ignorada por alguns, é a mais analítica, arbitrária e, portanto, deleitosa de todas as ditas ‘ciências sociais aplicadas’”. Exercemos a crítica em cada livro que decidimos comprar ou eliminar, em cada resumo que elaboramos, verbete escolhido, consulta atendida e movimento adotado do lado de dentro do balcão.
Fale um pouco sobre a importância da ética profissional.
Ética envolve uma reflexão continuada a respeito da circunstância do que nos é apresentado como realidade. Defendo, como Foucault, que a ética deve ser uma estética existencial. Ao falar em “estética”, reporto-me à alteridade da arte, cabendo ao indivíduo produzir a própria vida, insubordinado aos dogmas de qualquer espécie. E quanto ao “existencial”, defendo que a constituição do indivíduo se dá por meio da experiência. Talvez fosse a hora de nós, bibliotecários brasileiros, pensarmos em aderir ao pensamento de Foucault. Erigiríamos bibliotecas que, embora submetidas a ordem das coisas – ninguém escapa dela! – se colocariam num estado de tensão permanente, sempre pronta a colocar em evidência o contingente e o arbitrário.
O que mais gostaria de falar sobre as oportunidades que a profissão oferece?
As oportunidades de qualquer profissão são um misto de sorte e esforço. A sorte é, naturalmente, desordeira, nos escapando como a areia por entre os dedos. O esforço, por sua vez, pode ser apreendido num processo contínuo de atenção. Atenção a quem? Ao outro, claro. Acredito que o futuro da biblioteca passa por valorar o outro, acolhê-lo, escutá-lo, com a construção de espaços e canais para isso. Acho que investimos, por séculos, em estratégias de culto ao homem-padrão, caracterizado pela instrução e virtudes. Os resultados estão aí (vide Retratos da Leitura no Brasil). Minha sugestão? Invistam na empatia. Como bem assinalou Roman Krznaric, um grande pensador contemporâneo, ela pode ser o antídoto para as nossas desventuras individuais e coletivas.
Revista CRB-6 Informa
Na primeira matéria divulgada nesta seção do Boletim Eletrônico, que traz entrevistas que não foram publicadas na íntegra na última revista CRB-6 Informa, recuperamos uma entrevista com Liliana Giusti Serra, bibliotecária graduada pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FaBCI/FESPSP), e especialista em Gerência de Sistemas pela FaBCI/FESPSP. Você pode conferir a matéria completa aqui.
Além disso, uma matéria com Paulo da Terra Caldeira, professor aposentado da UFMG e ex-presidente do CRB-6, foi divulgada no último Boletim Eletrônico. Você pode conferir a conversa aqui.